terça-feira, 24 de junho de 2014

QUANTO VALE O PATRIMÔNIO HALIÊUTICO TRADICIONAL?


4.6. - Novos valores ambientais para o PHT
Independentemente da dificuldade que a ciência reducionista e cartesiana tem de delimitar, predizer, controlar e compreender os fenômenos naturais marinhos dentro da dimensão complexa da propriedade comunal na fluidez do mar, certas sociedades humanas conseguem este intento através de sistemas de uso tradicionais.
No entanto a complexidade das interações humanas com a natureza, fez com que os ecólogos tenham preferido deixar o homem de fora dos ecossistemas, sem considerar as relações mais respeitosas das populações tradicionais com o ambiente natural, criando uma visão misantrópica no discurso conservacionista ao considerar toda ação humana como destruidora da natureza (DIEGUES, 2004).

A emergência da questão ambiental nos últimos anos jogou ainda uma outra luz sobre esses modos “arcaicos” de produção. Ao deslocar o eixo de análise do critério da produtividade para o do manejo sustentado dos recursos naturais, evidenciou a positividade relativa dos modelos indígenas de exploração dos recursos naturais e desse modelo da cultura rústica, parente mais pobre, mas valioso, dos modelos indígenas. (ARRUDA, 2000, grifo do autor)

O relativo isolamento do caiçara paulista (MUSSOLINI, 1980) garantiu a tenência de saberes e fazeres culturalmente diferenciados por essas comunidades e, de certo modo, manteve o patrimônio cultural intacto até meados dos anos 1930 quando por pressão de um novo mercado emergente consumidor de pescado, elas passaram a se dedicar mais intensivamente à pesca (DIEGUES, 1973;1983; ADAMS, 2000).
O PHT passou então a agregar novos valores externos, como pescar além das necessidades de subsistência gerando excedente suficiente para comprar pequenos motores e redes de nylon que melhoravam os resultados da pesca, alimentando o círculo vicioso de exploração e dependência econômica que culminou na crise de sobrepesca dos anos 1970.
A princípio essas novas visões e valores não tradicionais agregados geraram o primeiro grande impacto sociocultural, o da sobrepesca, que até hoje ameaça a própria existência material desses pescadores. Entretanto a consciência adquirida de que os recursos pesqueiros são finitos em contraponto à fartura aparentemente infinita do tempo dos antigos (SANCHES, 2004; NÉMETH, 2010), gerou num primeiro momento o rompimento cultural com o as leis do respeito[1] (DIEGUES, 2004), onde os recursos que antes eram explorados de modo a garantir a sustentabilidade passaram a ser intensamente utilizados antes que se esgotassem.
Comprovada e reforçada pela prática a ideia de que os estoques são finitos, os caiçaras começam a sofrer uma segunda grande influência cultural no início dos anos 1980, a do ambientalismo. Assim o conceito de preservação ambiental também passa a fazer parte do vocabulário tradicional, embora esse enfoque preservacionista os excluísse do ecossistema a ser protegido e, muitas vezes os responsabilizasse pela degradação.
Hoje no século XXI, fomentado por outros enfoques acadêmicos de situar o PHT dentro de um contexto científico mais abrangente, como o da etnociência, uma nova ideia começa a fluir e penetrar essas comunidades: a de que eles próprios podem ser a ferramenta fundamental para a conservação dos recursos pesqueiros, pelo imenso conhecimento tradicional especializado que possuem à cerca de pequenas e específicas áreas de mar das quais são os naturais guardiões e usuários por gerações.

Na concepção de Toledo (1998), a diversidade cultural deve ser protegida da mesma forma que a diversidade biológica. Para ele, salvaguardar a herança natural do país sem resguardar as culturas que lhe tem dado vida, é reduzir a natureza a algo sem reconhecimento, estático, distante, quase morto. Destaca-se, então, que a sociodiversidade constitui uma dimensão tão importante quanto a biodiversidade (BERKES, 1989; DIEGUES; ARRUDA, 2001). (SALDANHA, 2005, grifo nosso.).

Essa ideia revolucionária opõe-se à atual marginalização e apartamento dos pescadores caiçaras de seu ambiente-território, institucionalizados pela criação das unidades de conservação. Também pode reverter a conotação negativa que conceitos e palavras como: meio-ambiente, proteção da natureza e conservação, têm no imaginário da cultura tradicional. Assim, os próprios caiçaras vendo-se parte do habitat, passarão a defender esses valores conservacionistas como garantia da perpetuação de seu modo de vida e reprodução de seus próprios valores socioculturais.
Cabe ainda relacionar esse modo de vida tradicional com o “Programa Bioeconômico Mínimo” de Georgescu-Roegen, cuja proposta é reduzir o consumo para assim reduzir a depleção dos recursos naturais a um mínimo compatível com uma sobrevivência razoável da espécie humana (CECHIN: 2008), transportando o valor do PHT de uma posição geralmente vista como atrasada e subdesenvolvida para a vanguarda do pensamento “Bioeconômico”. Essas considerações poderão proporcionar a justificada reinserção sociocultural desses saberes tradicionais valiosos para a sobrevivência humana em um ambiente dinâmico e imprevisível, preocupação inerente à Economia Ecológica e sua principal questão: “quais são os condicionantes ecológicos que não só restringem a atividade econômica, como colocam em risco a sobrevivência da humanidade em futuro mais distante?” (CECHIN, 2008).

Será que a humanidade ouvirá qualquer programa que implique uma constrição de seu conforto exossomático? Talvez, o destino do homem seja ter uma vida curta, mas ardente, excitante e extravagante ao invés de uma longa existência monótona e vegetativa. Deixando outras espécies -as amebas, por exemplo- que não têm ambições espirituais herdar uma Terra ainda banhada em muito sol (GR, 1976b: 35). (CECHIN,2008, tradução nossa)

O valor da tradição caiçara, para Seu Pedro Rafael da Praia Vermelha em Ilhabela, São Paulo, está registrado na memória do que lhe disse seu pai, já no leito de morte:

Eu já estou no fim, estou quase chegando no finzinho do meu caminho, mas vocês tem muita coisa pra frente ainda...você...olha... Eu... dinheiro, não deixo, porque você sabe o dinheiro que nóis ganhamo é só pra nóis vivê, não deixo dinheiro... mas com o que vocês ganhá eu deixo... Eu criei a vocês com esses tráfico[2], eu criei a vocês... ninguém passô fome, ninguém sentiu nada, e vocês... quando eu morrê, vocês fiquem com esse tráfico, só que vocês se une, se unam, não se desmanche, eu vivi nisso aí sem dependê de patrão pra vivê, que o patrão só Deus, e nóis na terra num tem que tê patrão, você num tem hora de entrá, num tem hora de saí, num tem que pedir a ninguém”. (BERNARDO e BIANCHI, 2009, transcrição nossa)


[1] Convenções sociais tácitas características destas populações.
[2] Tráfico é o equipamento usado para ralar a mandioca e fabricar a farinha.
Trecho do texto CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS DE VALORAÇÃO ECONÔMICA DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS ASSOCIADOS AO CONHECIMENTO TRADICIONAL DOS PESCADORES ARTESANAIS. autor Peter Santos Németh.



sexta-feira, 20 de junho de 2014

SEMINÁRIO DE CULTURA CAIÇARA EM SÃO SEBASTIÃO

Fonte: http://www.pesnochao.org.br/seminario.html.

Este evento tem como propósito promover a difusão de elementos da cultura tradicional caiçara junto aos professores do ensino público de Ilhabela e São Sebastião e demais interessados.
Foram convidados estudiosos deste universo para compartilhar seus conhecimentos, ampliar o interesse pelo assunto e instrumentalizar os educadores para novas abordagens dentro de sala de aula.

O registro da Canoa Caiçara como Bem Cultural Imaterial junto ao IPHAN, será abordado em uma palestra no dia 25 de junho pela manhã.

O Seminário acontece no Teatro Municipal de São Sebastião, nos dias 24 e 25 de junho, 

das 9:00 às 13:00 horas

Outras informações podem ser obtidas pelo telefone 12 3896 6727






Programação:

COMO FOI: CLIQUE AQUI


quinta-feira, 5 de junho de 2014

RESGATANDO OS MESTRES CANOEIROS DE CANANÉIA!

Fonte: http://gruposaogoncalo.blogspot.com.br/2014_06_01_archive.html

Grupo de Fandango Batido São Gonçalo se apresenta para jovens que participarão do documentário Canoas Caiçaras

Texto: Rodolfo Vidal e Bárbara de Aquino Fotos: Bárbara de Aquino
No dia 30 de maio, sexta-feira, na Casa do Fandango, o Grupo de Fandango Batido São Gonçalo fez uma apresentação cultural para jovens que estão participando do documentário Canoas Caiçaras: A arte tradicional nas mãos do Mestres canoeiros de Cananéia. Esta foi a primeira atividade oficial do Projeto Canoas Caiçaras que tem como foco principal contribuir para a salvaguarda do conhecimento tradicional caiçara, através da identificação, localização e mapeamento dos Mestres Canoeiros da cidade de Cananéia. Para isso, o objetivo do Projeto é capacitar um grupo de adolescentes da Escola Pública de Ensino Médio para a identificação, registro e valorização da memória da Cultura Caiçara no município de Cananéia, especialmente pela figura dos Mestres Canoeiros oferecendo oficinas voltadas a tradição da “feitura” da Canoa Caiçara e repassar para as novas gerações essa arte. O produto final será a produção de um vídeo-documentário de forma coletiva, retratando a vida e saberes desses últimos Mestres Canoeiros.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

CANOA CAIÇARA: HISTÓRIA, VALOR E MEMÓRIA SOCIAL


Já há algum tempo não escrevo sobre as Canoas Caiçaras, no último ano tenho me dedicado aplicadamente à pesquisa. Iniciei meu mestrado em Ciência Ambiental pelo Procam-USP o que tem me tomado muito tempo. Já tenho o esboço de alguns artigos sobre o Valor Econômico do Saber Tradicional Caiçara e também sobre A Pesca de Marcação em São Paulo, breve publicarei trechos.
Foi pesquisando para esses textos que me deparei no NUPAUB com a publicação: PESCADORES DE ITAIPU, de Kant de Lima e Luciana Pereira, EDUFF-1997.
Recomendo a leitura desse trabalho, de onde extraí o pequeno trecho abaixo que não entrou, mas deveria, no Dossiê Canoa Caiçara:

De qualquer forma, é interessante chamar atenção para um fato que talvez contribua para a determinação desse valor (exato valor das canoas), que não existe, por exemplo, nas referências ao valor monetário de seu produto no mercado. É que essas canoas, todas, têm histórias, vinculadas à história de seus proprietários anteriores e atuais, aos lugares de procedência, às condições específicas de sua aquisição e transporte, tornando-se quase que expressões não só das histórias das pescarias de Itaipu, como de todos os grupos de pescadores que com elas mantém ou mantiveram relações. (...)Essas canoas são, assim, mais do que objetos artesanais, verdadeiras memórias sociais.

Esse trecho define muito bem o sentimento que tenho quando restauro uma canoa. Ao lixar sua madeira, diversas camadas de tintas superpostas se revelam, e fico a imaginar quantos donos anteriores, quantas esperanças, anseios, projetos, intensões foram depositadas a cada pintura, compondo nessa memória social a alma da Canoa. Já cheguei a contar 11 camadas diferentes, e nessa última que estou restaurando, tenho pensado em como preservar ao menos um pedaço que exponha todas essas camadas anteriores justamente para registrar esse aspecto singular.