sexta-feira, 20 de novembro de 2015

TRADIÇÕES, TEMPOS e LUGAR

ENQUANTO UMA TRADIÇÃO VAI SE PERDENDO,
OUTRA TRADIÇÃO SE PODE COMPRAR, E,
POUCO A POUCO, VAI OCUPANDO O LUGAR.

Tradições e Tempos sobrepostos na Praia da Enseada. Foto: Peter S. Németh 2014.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

"CAPA", a canoa reciclada.

No ano de 2004, mais ou menos, o Mestre Antenor comprou uma canoa de "Seo" Neves, lá do Flamengo. Ela veio toda envelopada com fibra de vidro. Aquilo num prestava, enchia de água entre a madeira e a fibra, a madeira num secava nunca, a canoa era um peso só e a madeira já tava pijuca (fofa de podre). Arrancamos a capa de fibra dos dois lados, reformamos a canoa e ele a vendeu, (o resto de resina mal curada que sobrou na madeira colava no pé, isso enchia o saco). 
A capa ficou jogada lá em casa, o mato comendo ela devagarinho. Vez por outra eu puxava, cortava a grama e deixava ela lá de novo. Quando sobrava um materialzinho de resina e manta eu ia colando os pedaços dela e largava de novo. Anos e anos depois, ela ficou "em pé", já tinha cara de canoa, faltava o espírito. Planejei fazer umas garras, quilhas, cavernas, bordos, sobreproa, sobrepopa e reforçar tudo com mais manta e resina... mas nunca realizei. 
Um dia o Paulinho pediu e eu dei a "Capa" pra ele. Meses mais tarde ele fez um rolo com o Dito Grande, que levou a Capa pra casa dele e foi colocando "pedaço". Aquilo tudo que eu havia imaginado ele fez em madeira, quilha, caverna, bordadura. Faltou a manta e a resina, que custa caro. Novo rolo feito com o Paulinho, que contratou "um cara lá da cidade que mexe cum fibra de vidro". 10 anos de aventuras depois, terminaram a canoa, mas sabe como é né... pode até parecer muito bom mas: Canoa de fibra de vidro, JAMAIS! 
Canoa de fibra pinica o pé e a bunda; se bater numa pedra, racha e afunda; se lascar corta como faca a pele; se entrar água afunda; e o pior de tudo, impede que uma Tradição seja transmitida. Uma canoa não é uma árvore que morreu e sim uma árvore que foi promovida para uma Nova Vida.
Mas esse espírito mágico não está presente numa canoa de fibra, ela é só a capa, sem conteúdo algum, é um arremedo superficial, uma cópia macabra que retrata a decadência da cultura local. Uma saudade daquilo que jamais, e muito provavelmente, pelo menos na Enseada, jamais será novamente.
Parece que agora o Ascendino comprou a Capa. Canoa de sorte, ela ganhou um dono caiçara de raiz. Só que ele também, assim como outros caiçaras, já foi expulso da beira da praia e não tem mais Rancho de Canoa no jundú da praia. Agora a sua canoa fica guardada no tempo, sujeita à chuva e sol... talvez então não tenha sido tão ruim eu ter salvo a Capa, há males que vêm para o bem... 

Ascendino e a sua canoa "CAPA", na Praia da Enseada. Foto: Cristina Prochaska, 2014.
Mestre Antenor reformando a Canoa depois de tirar a CAPA. Foto: Peter Nemeth março de 2004.

A canoa pronta pra pintar. Foto: Peter Nemeth março de 2004.

Dito e Marquinhos conferindo o serviço. Foto: Peter Nemeth março de 2004.


domingo, 15 de novembro de 2015

RDS: um pouco da história recente.


"Desde 1989, a equipe do Nupaub (Núcleo de Apoio à pesquisa de populações humanas e áreas úmidas) da Universidade de São Paulo esteve envolvida em pesquisas sobre a situação das comunidades tradicionais, moradoras das unidades de conservação de proteção integral. Algumas comunidades, como as caiçaras do litoral Sudeste brasileiro, estavam ( e ainda estão) sofrendo o impacto da criação dessas áreas protegidas sobre seu modo de vida. Naquele momento, a única categoria que possibilitava a permanência dessas comunidades e o respeito ao seu modo de vida tradicional era a Reserva Extrativista conseguida com a luta dos seringueiros da Amazônia. Nesse sentido, o Nupaub iniciou o contato em 1992, com a comunidade do Mandira, no município de Cananeia-litoral de São Paulo para encontrar caminhos para a melhoria de seu modo de vida, mantendo os recursos naturais de que dependiam para sua sobrevivência, em particular da extração da ostra de mangue e do pescado. Durante dois anos essa equipe trabalhou sobretudo no apoio à organização da comunidade, resultando na constituição de uma associação dos moradores e na ideia da proposta de uma reserva extrativista.Os estudos e apoio técnicofinanceiro necessários ao estabelecimento dessa reserva foram realizados pela equipe do Nupaub para a implantação de estruturas de manejo onde as ostras não eram retiradas do mangue, com o corte de raízes mas transplantadas, ainda pequenas para as novas estruturas colocadas no meio do estuário. A solicitação da Reserva foi feita ao CNPT, ( Conselho Nacional de Populações Tradicionais,) do Ibama, em 1994-1995" (DIEGUES, 2015).

LEIA AQUI O ARTIGO COMPLETO DO PROF. DIEGUES

Chico Mandira e seu sobrinho Adriano. Foto: Joey L. - Lavazza Calendar 2016 - From father to son,
ASSISTA AQUI no Youtube.




segunda-feira, 12 de outubro de 2015

OS FALSOS NOMES DA ILHA ANCHIETA

O costume moderno de "copiar e colar" levou à graves erros quanto aos antigos nomes da Ilha Anchieta, que de tanto serem automaticamente repetidos, estão se tornando falsas "verdades".

Encontramos na literatura diversos nomes atribuídos à Ilha Anchieta através dos tempos: Ilha dos Porcos (OVIEDO,1510; ALBERNAZ,1631), Tapera de Cunhambebe (SÃO PAULO, 1921; GUILLAUMON, 1989), Tapíra (SAINT-ADOLPHE, 1845; GUILLAUMON, 1989), Pó-Quâ (ALMEIDA, 1902) e Ilha Anchieta (Decreto de 17 de março de 1934).
No entanto é nosso dever alertar que algumas dessas denominações historiográficas referentes à Ilha Anchieta devem ser descartadas e rejeitadas, pois embora amplamente divulgadas e replicadas por diversos autores sem o devido cuidado de checagem das fontes originais, ou referem-se à outra localidade geográfica, ou são fantasiosas.
Convém antes explicarmos terem existido duas localidades homônimas denominadas “Ubatuba” (Ubativa, Uwattibi, Humbatiba) entre o litoral de Bertioga e o do Rio de Janeiro.  Esta duplicidade causa ainda hoje enganos e contradições recorrentes em diversos textos sobre essa região.

Quanto aos falsos nomes da Ilha Anchieta, o primeiro deles, e o mais erroneamente replicado é a denominação Tapera de Cunhambebe. Esse nome refere-se à atual Ilha Cunhambebe localizada em Angra dos Reis, próxima à Ilha da Gipóia, no Estado do Rio de Janeiro.
A confusão vem de um documento datado de dezembro de 1610,  onde encontramos o registro de uma sesmaria em Angra dos Reis. O documento cita que o peticionário não tendo terras para fazer mantimentos:

[...] pedia lhe desse uma ilha que está defronte Ubativa chamada Tapera de Cunhambebe que terá de terra toda ella obra de meia legua pouco mais ou menos para nella fazer mantimentos ..................... ilha e terra está em Angra dos Reis e ilha de Jepo..ya e assim mais avante da dita ilha na ponta de terra firme [...]” (SÃO PAULO, 1921)

Também o nome Pó-Quâ, significando “pontuda”, foi uma tentativa do Dr. João Mendes de Almeida (1902) que procurou “adivinhar” a origem do nome original da ilha, Porcos, como sendo a possível corrugação dos vocábulos tupis  pó e quâ. Basta uma breve leitura do prefácio de seu Diccionario Geographico para descobrirmos que o autor forçou a procura “de uma origem observavel e verificavel, quer na geographia da localidade, quer nos elementos da estructura grammatical do vocabulo tupi” (ALMEIDA, 1902). E também que:

Elle teve em vista as regras do methodo experimental, entre as quaes há uma que previne o observador quanto o espírito de systema; mas isto não quer dizer que deixe de ser observada a razão da existencia e a forma primitiva dos nomes portuguezes. Quasi todos os nomes portuguezes, dados não officialmente aos logares, observada a sua razão de existência e a sua forma primitiva, foram nomes tupis hoje alterados por corrupção em consequência ou da dificuldade da pronuncia da palavra tupi, ou da semelhança com a palavra portugueza no som, no ruído ou na ressonancia (ALMEIDA, 1902).
 
Nesse caso, o nome original e mais antigo registrado da Ilha Anchieta é ibérico, Puercos, portanto a tese fantasiosa de Almeida (1902) que o nome Porcos, seria uma corrupção do tupi Pó-Quâ, cai por terra.

Recorrendo portanto à fontes mais confiáveis e antigas, encontramos em Oviedo (Islario general de 1539-1600) comentando Alonso de Santa-Cruz, a justificativa do nome Isla de los Puercos, já bem difundido entre os navegadores europeus entre os séculos 16 e 17, “por nela haverem muitos porcos selvagens” .
Também encontramos o relato de uma professora primária, que viveu na Ilha Anchieta entre 1945 e 1948, onde é feita uma referência curiosa ao motivo da denominação Ilha dos Porcos:

Quando menina, estudava geografia de São Paulo e a Ilha dos Porcos me chamou a atenção, por causa do nome estranho. Mal sabia eu, que anos e anos se passariam e o meu primeiro emprego como professora seria justamente na antiga Ilha dos Porcos, hoje denominada Ilha Anchieta. Porcos! Por que se chamava assim essa famosa Ilha? Porque havia porcos catetos em grande quantidade vivendo nela. Não porcos domésticos, mas catetos, porcos selvagens, magníficos e perigosos. O cateto é chamado porco-do-mato brasileiro, mas não é da família do porco, porque só tem três dedos nas patas de trás. O que caracteriza esse animal é o colar de grossos pelos brancos, que rodeia seu pescoço. Em 1947 o último cateto da Ilha Anchieta foi abatido e eu tive o privilégio de comer um pedacinho de sua saborosa carne (DAS NEVES, 2012).

Também é notório nos relatos dos antigos navegadores a necessidade de constante reabastecimento das embarcações com víveres, principalmente água e alimentos. Por esse motivo muitas ilhas foram estrategicamente assinaladas com o nome “dos Porcos” nas primitivas cartas náuticas, diários de bordo e nos Roteiros ou Livros de Rotear, como locais propícios escolhidos para essa finalidade específica. Fato é, o nome Ilha dos Porcos ser recorrente em várias rotas costeiras do litoral brasileiro e americano, somente no território de Ubatuba são duas as ilhas com esta denominação, sendo uma a Grande (hoje Anchieta) e outra a Pequena (na Enseada do Ubatumirim).
E por último, Tapíra, registrado por Saint-Adolphe em 1845, nome que provavelmente seja o único que possa ter alguma ligação com uma denominação Tupi, embora o autor não revele as fontes consultadas impossibilitando uma checagem mais aprofundada.

Esperamos com esse breve estudo, contribuir para o fim dos recorrentes erros de denominação historiográfica da Ilha Anchieta, cegamente repetidos sem a devida checagem histórica, à ponto da fantasia se transformar em ralidade pela repetição mecânica de um engano grosseiro.
ESTE ESTUDO É UM TRECHO DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEFENDIDA EM SETEMBRO DE 2016.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

ILHA ANCHIETA 110 ANOS ATRÁS

Durante os últimos dois dias me debrucei sobre os três contratos de compra e venda da Ilha dos Porcos, hoje ilha Anchieta, mergulhando exatos 110 anos no passado, tempo da expropriação forçada de 148 pessoas, proprietárias de edificações, terras, plantações, benfeitorias, canaviais, cafezais, pomares e pelo menos 35 coqueiros. Noventa e cinco (95) "vendas" foram concretizadas pelos 92 proprietários de 1 ex-escola do sexo feminino, 2 casas-armazém sendo uma de secos, molhados e fazendas (tecidos), 4 galpões, 2 galpões de canoas, 1 rancho de canoas, totalizando 116 edificações.
Cento e quarenta e cinco (145) pessoas adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde proprietário algum foi citado nos contratos.
Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim, Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral, Barbosa, Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
Descobri que o marido de Idalina Graça, provavelmente foi expulso do Mato Dentro e confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira, cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da Enseada dos anos 1930.

CAPITULO I
A viagem
Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também, filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas. Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido, fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma. Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo. Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? — Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino! Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante: — Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes! Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo, a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.

CAPITULO II
Início da luta
Depois de instalados, fiz, com meticuloso cuidado, uma investigação pelos arredores de minha casinha. Como era simpática! Pequenina e branca, de janelas azuis, espiava a medo para o mar! Algumas árvores frutíferas completavam o encanto do meu novo lar. Dias depois. Albino abriu uma pequena venda. Ali se reuniam, quando não iam à pesca à noite, os caiçaras, bebendo um trago ou jogando truco; discutiam o tema de todos os dias: — o tempo, o peixe, o vento e, algumas vezes, política, o que me divertia muito. Era a Praia da Enseada, naquele tempo, isolada da cidade, mas, plena de beleza poética. Possuía umas vinte habitações ao todo, de construção pobre, mas, em compensação, ricas de luz e harmonia. Eram os seus habitantes gente simples de costumes sadios e precisos em suas ações. Em breve me fiz amiga de todos êles e, para facilitar a vida, troquei meus trajes femininos por outros, masculinos. Agora sim! — pensei — ia trabalhar, e, com o tempo, também possuiria minhas redes! Foi essa a época mais feliz da minha vida. Da manhã à noite eu lidava com peixes, aprendendo na convivência do homem litorâneo, usufruindo a vida e bem alicerçada na Fé.
Entre os moradores da pitoresca praia, havia um que se sobressaía aos demais pela agudeza de seu espírito, nunca faltando onde a ação exigisse sua presença. Esse pescador é, hoje em dia, homem de negócio na próspera Ubatuba. Já fazia seis meses que, felizes, morávamos no Retiro Azul, pois assim eu batizara o nosso lar. — Como adoro este nosso ranchinho! — dizia eu. — Meu e não seu... — respondia Albino com ar trocista. Você não pára em casa.. . Era uma grande verdade. Apenas despontava a madrugada e os primeiros raios de luz beijavam o mar, já ali me encontrava, extasiada. Despertava de meu encantamento, chamada à realidade da vida pela voz de Albino, reclamando o café da manhã. Êle não se conformava com tão "maus costumes" da minha parte. Ralhava: — Até parece que você casou com o mar e não comigo! — Mas, meu bem — retrucava eu, desapontada em ver os meus devaneios detestados por Albino — eu não tenho culpa de ser assim! Adoro o esplendor deste oceano e a sua imensidão! É um espetáculo que sempre se renova e age poderosamente em mim... Eram apenas rusgas conjugais, logo desfeitas. Hoje vivo da saudade delas e daqueles tempos já tão distantes.
No mês de julho a nossa praia animou-se. Em todos os lares notava-se desusado movimento: caiavam-se as paredes, lavava-se o chão e, o próprio pescador guardava a canoa no rústico galpão, antegozando o que lhe era muito caro: A "Folia do Divino". Estava na Ribeira, cantando na casa do João Glorioso, pescador conhecido, homem bom, de honestidade comprovada em todo o município de Ubatuba. Em nossa casa não havia espaço para receber a ''folia", pois a sala principal tinha sido transformada no negócio de Albino. No dia em que o Divino chegou à Praia da Enseada, fechamos a venda e ambos fomos assistir a festa, na casa de um parente de meu marido, o Gil. Desde a manhã que este não cansava de carregar comidas e bebidas mandadas vir expressamente da cidade, aos cuidados de João Vitório. Sinto-me emocionada ao recordar a expressão feliz que animava aqueles semblantes honestos e cheios de vida, na expectativa ansiosa de receber a Jesus em seus lares (quão santa e pura é a fé do homem do mar!). Lembro-me bem que eu mesma me senti comovida, quando a Bandeira do Divino apontou na estrada, na frente de um cortejo, carregada por uma bonita praiana. Avançava, as fitas esvoaçando ao sopro da viração, lentamente, pois muita gente detinha a jovem no caminho, fazendo-a baixar as fitas para serem beijadas. Muitas delas eram cortadas e enroladas para serem guardadas como amuletos. Esses costumes, quase totalmente desaparecidos, deixam agora somente recordações daqueles tempos, daquela gente simples e boa, que vivia longe dos homens e perto de Deus. Foi para mim, neófita nesses ritos, um espetáculo maravilhoso! Ver naquela gente metida em seus trajes domingueiros, com os olhos fisgados no grupo solene dos violeiros. .. Então, o mais moço deles, um guapo praiano, adiantou-se aos companheiros, inclinou a cabeça sobre a viola e com voz ampla e sonora modulou estes versos singelos:
"O Divino Espírito Santo nesta casa vai entrar;
Êle vos pede pousada e também o que almoçar"
Depois deste improviso foi que o simpático violeiro, acompanhado por todos, entrou nos pagos do Gil. A dona da casa, tendo recebido a Bandeira, carinhosamente levou-a para o interior, cobrindo-a com alva e rendada toalha. Em seguida, veio sentar-se a meu lado e perguntou-me: — É bonito, dona Idalina? — Não, Dita. O que estou vendo é mais do que bonito. É simplesmente maravilhoso! — Olhe, querida! Olhe para a expressão fisionômica destes homens! continuei — Parecem crianças recebendo um brinquedo ardentemente desejado! Por minha vez, senti como um nó na garganta, sem saber definir o porquê desse estado d'alma. Foi então que a voz jovem e bem timbrada do segundo violeiro, cantou os versos seguintes:
"Descansando em vossa casa,
Linda flor de mãe querida,
Pergunto a senhora dona
Onde está nossa comida."
E, depois bem almoçados:
"Espiai pro Espírito Santo,
Lindo colar no pescoço.
Deus ajude com saúde,
Quem nos deu tão bom almoço.
O Divino deu um "viva",
Em toda parte se ouviu.
Peço a Deus que abençoe,
Quem nossa mesa serviu."
Já à noitinha, depois de muita cantoria, vinha o fecho:
"Mais um "viva" se ouviu
Quando se escondia o sol.
Peço a Deus que me dê
Uma cama e um lençol."
Fazia-se tarde e Albino foi despedir-se dos donos da casa, enquanto eu, depois de uma longa volta em torno da casa, e também de levar alguns empurrões, consegui me aproximar do "folião", nome esse que, a meu ver não combina com as suas atribuições, tão a sério êle leva o desempenho do papel de violeiro-cantador. Quis sondar-lhe a alma para descobrir de onde vinha o encanto que emanava da sua poesia. O simpático praiano, ao saber do meu interesse, repetiu-me os versos que garatujei em uma folha de papel, com a promessa, da minha parte, de devolvé-lo no dia seguinte, a fim de que êle o guardasse. — Afinal, Idalina, para que você quer estes versos ? — perguntou Albino; e vendo que eu não respondia, continuou sorrindo: — Será que você pretende cantar folia? Não meu bem! Se Deus quiser, não há de ser preciso você fazer tanta força assim... Mesmo porque — juntou trocista — a escutar o seu canto, prefiro mil vezes o coaxar da rã do brejo... Não respondi. Cantarolando baixinho os versos que escutamos do moço violeiro, sentia ecoar no meu coração a singeleza das rimas, tão de acordo com o ambiente rústico e simples.
Enfim, chegamos à nossa casinha. Albino reassumiu seu posto no balcão, e eu, bem a contragosto, guardei os meus sonhos em uma caixinha para momentos mais apropriados. Ouvi, no decorrer da noite, o som das violas, acompanhando o canto do "folião".
O dia seguinte amanheceu lindo, com o sol amigo. Estávamos ainda no café da manhã, quando Dita entrou em casa correndo. Como era bonita a caiçarinha! Cabelos castanhos e crespos, olhos esverdeados tendendo para o azul. Eu sempre dizia, brincando com ela: — Menina, do quem você é namorada. Do mar ou do céu? E ela dizia: — Dos dois, dona Idalina. E foi a graciosa moça que, com algazarra juvenil, nem deixou o meu marido abrir o armazém, dizendo: — Não dará tempo, "seu" Albino. O folião vai cantar a despedida! Adiantando-nos em louca corrida, partimos as duas para a praia ensolarada, apesar dos veementes protestos de Albino, que vinha mais devagar. Antes de chegarmos esperei-o, e, já agora compenetrada do papel de senhora casada, parei, tomando fôlego. Em seguida abrimos caminho através dos nossos amigos. Assim posso chamá-los, pois na realidade, sem exceção, eram todos bons e carinhosos para nós. A "Folia" já estava de saída. Sorridente, o jovem cantor adiantou-se e gentilmente pediu licença a meu marido para oferecer-me os primeiros versos da despedida. Concedida a licença, o mesmo levantou a voz e cantou:
"Dizem que mulher de fora
 Jamais gosta do lugar
 Mas esta dona tem cara
 De quem aqui vai ficar.
 Mercê veja se acostuma
 E desde já vá criando,
 Pato, galinha e ganso,
 Que para o ano voltamos.
 A esmola que vós destes.
 Lá na Glória chegou:
 Os anjinhos receberam.
 Nossa Senhora guardou.
 O Divino foi prá Glória,
 Foi buscar a boa sorte
 Pra casa onde almoçou."
Vi-os partirem com saudade. Foram momentos felizes esses que vivi, nos primeiros dias da minha chegada à Enseada. Mais de trinta anos são passados. Porém, em minha alma, ainda mora a recordação viva da festa do Divino, que eu vira pela primeira vez. É o passado ainda perfeito, trinta e poucos anos depois, que fala nas páginas deste livro. É também uma homenagem aos meus amigos de então, que habitavam a Praia da Enseada. Uma vez por outra, tangida pela saudade, eu procurava recordar os versos, tão simples em seus dizeres e tão belos na voz de um filho daquelas praias.
Folia Do Divino na Enseada, foto: Cristina Prochaska - 2015.
Escritura de compra e venda da Ilha Anchieta, foto Peter Németh.


quarta-feira, 24 de junho de 2015

O papel da Socioantropologia Marítima.

Essa disciplina do NUPAUB/PROCAM/USP será ministrada agora no segundo semestre de 2015 pelos professores: Dr. Antonio Carlos Sant'ana Diegues e Dr. Adrian Ribaric.

Objetivos: O curso pretende apresentar uma visão interdisciplinar no estudo do mar, incluindo a contribuição das ciências sociais para a análise das relações entre sociedades e ambientes marinhos.

Justificativa: O mar, até recentemente foi considerado o espaço exclusivo de estudo das ciências naturais. Com o aumento das atividades marítimas, seja pela pesca, pelo transporte e pelo turismo, o mar começou a ser objeto de estudo de diversas disciplinas das ciências humanas, entre as quais a história, a antropologia e a sociologia. Nos últimos anos, no Brasil, a socioantropologia marítima tem contribuído para o aprofundamento dos estudos que relacionam as sociedades e o mar.

Período: 2º semestre de 2015 – Concentrada: 05 a 16 de outubro. Créditos: 04.

Horário: 19 às 22:30. Vagas: 20 alunos de pós-graduação e 10 alunos especiais.

Local: NUPAUB, Rua do Anfiteatro 181, Colméias, Favo 6.

Fone: (11) 3091-3307(11) 3091-3307

Acesse a ementa, CLIQUE AQUÍ.

E a valiosa bibliografia que será utilizada já está disponível, CLIQUE AQUÍ.


Prof. Diegues, foto: Peter Santos Németh

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A INICIAÇÃO NA ARTE DA PESCA

Durante 11 anos (2000 a 2011) convivi diariamente com as comunidades caiçaras locais, da Enseada do Flamengo, em Ubatuba, São Paulo. Nesse tempo, diretamente atuei como pescador profissional e aquicultor (maricultor) junto aos pescadores tradicionais locais, compartilhando diariamente durante a intensa faina pesqueira seus saberes, artes, anseios, dificuldades, sofrimentos e alegrias.
Durante esse período em que me transformei em pescador, enquanto absorvia diretamente através da vivência real, os costumes e saberes locais relacionados ao universo pesqueiro tradicional, nunca me foi possível abandonar o olhar crítico, que, internamente e à todo instante, não cessava de tecer questionamentos e comparações entre, aquele modo de vida por mim escolhido e toda a bagagem cultural típica de um citadino de classe média, cuja noção de sobrevivência provinha de uma doutrina urbana que me havia impregnado desde os tempos de criança. Estudar, escolher uma profissão, formar-se na faculdade, arrumar emprego em uma boa empresa, casar, ter filhos e aposentar-se, essa era a cantilena.  Não poderia existir vida ou outra forma de sobrevivência que não fosse através desse caminho urbano-industrial.
Quando resolvi romper com esse sistema à mim imposto goela abaixo, e decidi “largar tudo” para ir viver literalmente na beira praia, por muito tempo ainda acompanhou-me a incerteza e o sentimento de culpa, pois, como poderia eu sobreviver naquele lugar novo, onde tudo o que eu havia estudado e aprendido na “escola” de nada servia para assegurar minha subsistência. Enquanto essas dúvidas me corroíam, todos os dias eu ia cada vez mais me aproximando e ganhando a confiança dos pescadores que se reuniam em frente à minha casa para conversarem, remendarem suas redes, consertarem seus barcos e canoas.
Certo dia correu a notícia de que uma “pegadeira de lula” estava acontecendo no Parcelzinho. Perguntei onde era e me disseram: “virando o canal”. Perguntei como se pescava a lula, “cum zagarelho, é tipo uma garatéia de pescar espada, mas não precisa de isca, a lula pega sozinha”.
Até aquele momento, nunca nenhum pescador me havia convidado para ir pescar, e mesmo com minha demonstração de interesse pela pescaria de lula, naquela manhã ninguém me convidou para ir pescar no Parcelzinho. Pensei, vou pegar minha canoazinha e ir até esse Parcelzinho, já que “virando o canal” não deve ser tão longe. Peguei a minha garatéia de pescar espada, linha, chumbada, arrumei uma corda bem comprida e uma poita para ancorar a canoa. Levei água, faca e uma cuia pra tirar a água (alguns conselhos eu já tinha escutado) e saí remando rumo ao canal da Ilha Anchieta, o temido Boqueirão. Uma hora e pouco remando, cheguei ao Boqueirão, fiz a travessia contornando para fora, virei e... ninguém! Remei mais um pouco para fora, para ter a visão total da costeira e vi ninguém. Comecei então a olhar para todos os lados, procurando, procurando, então vislumbrei bem longe, lá pras bandas do Ilhote das Cabras, bem rente à costeira da Ilha Anchieta, um monte de barcos juntos. Firmei os olhos e reconheci os barcos do Ico e do Jaime, dois pescadores com os quais havia conversado naquela manhã. Estavam muito longe, eu teria que atravessar todo o largo da Ilha Anchieta, atravessando todo o temido Boqueirão, ficando exposto ao vento e à correnteza, e nem ao menos sabia quanto tempo eu iria levar para chegar lá remando minha canoazinha, que era de um tamanho suficiente só para brincar na beira da praia.
Levei uns 5 minutos para decidir o que fazer, resolvi arriscar.
Remei, remei, remei, remei e quase três horas depois cheguei entre os barcos escutando a turma falar: “olha o Alemão aí!”. Achei um local à uma certa distância e joguei minha poita. Arrumei a linha com a garatéia de espada e comecei a pescar. Todos os outros pescadores pegavam lulas, uma atrás da outra, e na minha linha, nada. Coloquei uma chumbada, e, nada. De repente armou uma tempestade vindo de sudoeste, cobrindo a Ilha toda, era uma trovoada com nuvens cinzas enormes que avançavam muito rápido trazendo vento e chuva grossa, uma típica chuva de verão. Não desisti, fingi não estar com medo pois todos ali estavam de olho em mim, soltei mais um pouco de corda, pois o vento já estava forte e não queria que a canoa fosse arrastada, e quando a chuva caiu eu deitei quietinho no fundo da canoa e esperei a trovoada passar. Para minha sorte, a chuva de verão é forte, mas passageira, e perto de 30 minutos depois a tempestade já havia passado e o sol da tarde voltava a brilhar. Tirei a água de chuva da canoa com a cuia, e tentei uma última vez pescar, mas nenhuma lula mordia meu anzol, pensei: que mistério será esse... porque só eu não consigo pescar?
Percebi então que era perto de 4 horas da tarde e pelo tempo que tinha demorado para remar até o Parcelzinho, na volta, eu iria chegar só de noite na Praia da Enseada porque não pretendia pedir uma carona de volta, pois tinha que "dar uma de machão" já que ninguém tinha me convidado para estar ali pescando.
Recolhi a poita, ajeitei as tralhas e rumei naquele lindo entardecer para o Boqueirão, aproveitando para atravessá-lo enquanto ainda o dia estivesse claro, por segurança. Cheguei em casa já com a noite fechada, sem lula alguma mas com uma aventura fantástica gravada para sempre na minha alma.
No outro dia, reencontrando a turma de pescadores na praia, ao invés de me chamarem de Alemão, todos brincavam: “ó o matadô de lula aí!”. Por toda aquela semana eu me tornei o “matador de lula”, embora nenhuma delas eu tenha capturado. E a causa desse insucesso logo eu descobri, já que o zagarelho, na verdade não é igual à uma garatéia de espada como eu havia erroneamente entendido, na verdade, ele é uma isca artificial especialmente projetada para pescar lulas, então só com muita, mas muita sorte mesmo eu teria conseguido pescar uma lula com a minha garatéia.
O resultado dessa epopeia toda foi que imediatamente, todos os pescadores passaram a me chamar para pescar em seus barcos e começaram a me ensinar as técnicas de pesca. Assim, um universo novo e riquíssimo começou a se materializar diante dos meus olhos. Fui iniciado nas artes de pesca e toda a paisagem, os objetos, as ferramentas, os animais, o mar e os peixes, adquiriram novos e surpreendentes significados. Tudo o que eu já tinha visto e experimentado sofreu uma transformação radical tanto na forma como no modo que minha percepção interpretava o ambiente natural. Uma outra dimensão, um outro mundo possível se descortinou e nesse processo eu mesmo me transmutei de maneira irremediável e irreversível.

Garatéia de espada
Zagarelho de lula



Pescaria de lula. Foto: pescaalternativa.com.br.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

É PRECISO PENSARMOS A TAINHA.

Atualização: ARTIGO COMPLETO NESTE LINK: http://ppg.revistas.uema.br/index.php/REPESCA/article/view/1053

Mais do que apenas "um peixe", muito menos um mero "recurso" a ser explorado pelo capital, a tainha é na verdade um "serviço cultural", ou seja uma função do ecossistema que influencia aspectos estéticos (as canoas e os petrechos), recreativos (o jogo da pesca), educacionais (o como pescar), culturais (a tradição da pesca) e até espirituais da experiência humana (MEA, 2003, p.77).
O Prof. Antonio Carlos Diegues costuma dizer que "a tainha é um peixe social", e isso pode ser comprovado pelo "frisson" que a expectativa da chegada dos cardumes causa nas comunidades litorâneas desde a Lagoa dos Patos, no sul do Brasil, até o Norte do Rio de Janeiro.
Nem bem termina o verão, os pescadores já iniciam o "preparo" para o tempo frio. Tresmalhos são checados e reformados, as canoas são reparadas e pintadas e sinais dos ventos e do mar são analisados na busca de um prognóstico para a próxima safra de tainhas.

No entanto recentemente, mais uma vez desastrosamente para os artesanais de São Paulo, um novo ator, além do velho conhecido CEPSUL, infiltrou-se nesse roteiro, a portaria interministerial nº 4, legislação feita pelo MPA e MMA.

Regras que promovam o manejo sustentável do "recurso" tainha, são mais do que necessárias, mas o problema é que isso acontece em um ambiente dominado pelo lobby da pesca industrial, cujos sindicatos aceitam todos os limites, cotas e defesos, desde que não diminuam suas capturas. O que acontece então, é que os setores com pouca representatividade, principalmente os artesanais de canoa à remo do litoral norte de São Paulo, saem sempre prejudicados com essas portarias feitas "sob medida" para os interesses industriais. Miranda (et al., 2011) defendem a suspensão da pesca de tainha pela frota de traineiras, e citam que em julho de 2010, apenas uma única traineira “matou” mais tainhas do que o total capturado no mesmo mês pela pequena pesca, em catorze (14) municípios paulistas. Alertam também que em São Paulo nesse mesmo ano de 2010, nos meses de junho e julho, apenas 1,1% das unidades produtivas envolvidas na pesca da tainha, eram de traineiras. Mesmo assim foram responsáveis, realizando apenas 0,4% das descargas, por 50,1% da captura total de tainhas. Demonstram os autores, cabalmente, a imensa desproporcionalidade entre a frota de traineiras e a pequena pesca, resultando em competição desigual, menor disponibilidade da espécie para as populações tradicionais e maiores custos sócio-econômicos e culturais para os usuários desse recurso pesqueiro (MIRANDA et al., 2011: p.17-19).
Traineira chapada de tainha. fonte facebook: No encanto azul do mar.
A tainha, sendo um "peixe social" deveria ser considerada como um patrimônio cultural reservado apenas para a captura não mecanizada/motorizada. A interação entre essa espécie e os nativos da costa brasileira já foi descrita por Hans Staden no ano de 1557, por Carlos Borges Schmidt e Gioconda Mussolini, nos anos de 1940 e 1950, portanto é uma cultura arraigada no DNA dessas populações costeiras. Não é possível permitir que traineiras capturem toneladas e toneladas de tainhas simplesmente para que toneladas de suas ovas sejam exportadas para o Japão e o peixe seja colocado à venda conforme a foto abaixo feita no Extra-Itaim em maio de 2015. Esse peixe está podre! Que pescador comeria um peixe nesse estado, quanto mais teria coragem de vendê-lo! Só presta pra isca de garoupa.
O questionamento aqui é o seguinte: qual é o benefício/contribuição da pesca industrial (exceto o lucro concentrado na mão dos armadores), já que o produto final chega nessas condições acima, ao consumidor final (se é que alguém tem coragem de consumir esse peixe podre)? 

Enquanto isso, o pescador artesanal de canoa à remo sofre outro tipo de tratamento.
Pescadores da arte Pesca de Tróia, sendo presos na Enseada. Foto: Peter Nemeth.
Na foto acima, os pescadores de tainhas e paratis estavam sendo presos pela segunda vez. Na primeira foi apreendida a rede de tainha, 10 quilos de tainha e estipulada uma fiança de 300 reais para cada um. O detalhe pavoroso dessa autuação, foi que toda essa injustiça deu-se baseada em uma portaria CEPSUL/IBAMA que já estava revogada no ato da "infração". Ou seja, prisão ilegal.
Agora essa nova portaria nº 4, que não caracteriza as peculiaridades "endêmicas" das artes de pesca tradicionais do litoral norte de São Paulo, coloca de novo em risco a Pesca de Tróia e os pescadores de canoa. Como a portaria não define a Pesca de Tróia do litoral norte de SP, e cita só a Pesca de Trolha (sinônimo sulista da mesma arte), e também no site do CEPSUL não existe a definição dessa arte, sobra margem para a autuação desses pescadores baseada na discricionariedade dos policiais ambientais. Já que no caso da foto acima, após entrada com pedido de danos morais pela prisão ilegal, o juiz indeferiu o pedido, dizendo que eles praticavam Pesca de Caceio (outra arte de pesca totalmente diferente), e essa pesca seria proibida por outra legislação na proximidade das praias!!?? Injustiça, injustiça e mais injustiça.   
Esse momento especial de discussão desse Plano de Gestão para a pesca sustentável da tainha, acredito eu, seja ideal para que todas essas discrepâncias e injustiças sejam colocadas à mesa. Para isso é necessária a união de todos dos pescadores artesanais não mecanizados/motorizados que têm na tainha, muito mais do que um recurso natural, e sim um patrimônio sociocultural indissociável de seu próprio modo de vida tradicional.

CONTINUA... em 2016: http://canoadepau.blogspot.com.br/2016/06/e-preciso-pensarmos-tainha-2.html

IPHAN. (2012). A pesca da tainha na Ilha do Mel: territorialidades, sociabilidades e técnicas. Curitiba: Superintendência do IPHAN no Paraná.
MEA. (2003). Ecosystems and human well-being: a framework for assessment/Millennium Ecosystem Assessment. Washington: Island Press.
MUSSOLINI, Gioconda (1980). Ensaios de antropologia indígena e caiçara.  Rio de janeiro: Paz e Terra. 287p.
SCHMIDT, C. B. (1948). Alguns aspectos da pesca no litoral paulista.  p.41., Diretoria de publicidade agrícola – Secretaria da agricultura do Estado de São Paulo. Separata da Revista do Museu Paulista, Nova série, vol. 1, 1947, São Paulo, Brasil.
SECKENDORFF, R. W. von; AZEVEDO, V. G. de (2007). Abordagem histórica da pesca da tainha mugil platanus e do parati mugil curema (perciformes: mugilidae) no litoral norte do Estado de São Paulo. Série Relatórios Técnicos, São Paulo, n. 28: 1-8, 2007. (ISSN: 1678-2283). Disponível em: ftp://ftp.sp.gov.br/ftppesca/serreltec_28.pdf. Acesso em 06 out. 2010.

MIRANDA, L. V. ; CARNEIRO, M. H. ; PERES, M. B. ; CERGOLE, M. C. ; MENDONÇA, J. T.. (2011). Contribuições ao processo de ordenamento da pesca da espécie Mugil liza (Teleostei:Mugilidae) nas regiões sudeste e sul do Brasil entre os anos 2006 e 2010. Série Relatórios Técnicos (Instituto de Pesca. Online), v. 49, p. 1-23, 2011. Disponível em: ftp://ftp.sp.gov.br/ftppesca/serreltec_49.pdf. Acesso em 22 out. 2015. 

terça-feira, 19 de maio de 2015

DA MALHA 6, TUDO SE APROVEITA.

Quando começa o "tempo frio" e ocorrem as primeiras "revoltas de mar", a turma já está preparada para testar suas redinhas de camarão.
Às vezes é puro palpite e outras pode ser um camarão branco que caiu no tresmalho malha 10 ou malha 7, dando o alarme.
Só que nessa época ocorre um grave conflito pesqueiro entre os barcos de arrastão de porta que entram na Enseada do Flamengo varrendo tudo, e as canoas que pescam camarão de rede de espera, que capturam seletivamente os peixes. Muitos pescadores de canoa são ameaçados aos berros de: "Tira essa rede daí senão vou passar por cima!", e várias vezes as redes amanhecem cortadas de faca ou mesmo desaparecem.
Aliás é proibido arrastar somente o camarão branco, não existe licença para isso, a licença é só para o camarão sete barbas como espécie alvo. Também o defeso, só existe, não para proteger o sete barbas, mas para permitir a migração do camarão rosinha (o juvenil do rosa), que nessa época sai do raso e vai para o fundo.

Foto: Peter Németh; Porto Meu Chamêgo.
Existe um tresmalho especialmente confeccionado para a captura do camarão branco (Litopenaeus schmitti), utilizado somente durante a safra nos meses do tempo frio (maio a julho). Essa rede é confeccionada com malha 6 (seis centímetros entre nós opostos), fio 0,30 e entre um e dois panos de altura com duzentas braças ou mais de comprido. Para o entralhe, as arcalas, tralhas, chumbo e cortiça seguem o padrão local de "2 e 1".
A condição ideal de mar para a pesca de tresmalho é logo após uma revolta de mar, quando as espécies alvo movimentam-se bastante e a água está mais turva.
Vale destacar que existe uma portaria que proíbe o uso da malha 6 em redes de pesca no litoral sudeste/sul do país, tornando essa pescaria ilegal na região. No entanto após um requerimento oficiado em 31 de março de 2008 junto ao IBAMA pela Associação Pescadores da Enseada (A.P.E.), uma O.N.G. que defende os interesses dos pescadores tradicionais locais, foi criado um grupo de trabalho para analisar a questão. Desse grupo surgiu um estudo envolvendo o Instituto de Pesca, a Fundação Pró-Tamar e o IBAMA, que identificou ser essa arte de pesca culturalmente endêmica na região de Ubatuba e comparativamente menos agressiva ao ambiente marinho, na captura do camarão branco, do que o arrastão de porta.
Uso sustentável dos camarões no Litoral Norte do estado de São Paulo, Descrição: O projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com o IBAMA, Instituto de Pesca e Projeto Tamar/ICMBio. Tem como objetivos acompanhar as pescarias dos camarões realizadas com redes de arrasto, principalmente o camarão-sete-barbas e o camarão-rosa, e avaliar os defesos instituídos através de Instrução Normativa do IBAMA. Também está sendo avaliada a pescaria do camarão-branco capturado por redes de emalhe/espera (malha 6), pelos pescadores artesanais tradicionais, sendo que esta modalidade pesqueira ainda não se encontra regulamentada pelo IBAMA.. , Situação: Em andamento; Natureza: Pesquisa. , Integrantes: Venancio Guedes de Azevedo - Integrante / Bruno Giffoni - Integrante / Laura Villwock de Miranda - Integrante / Maria Cristina Cergole - Coordenador., Financiador(es): Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais - Auxílio financeiro.

Tudo isso surge de um processo que pressupõe um sujeito cognitivo em constante interação entre o trabalho mental e manual, e entre este e seu entorno. E é precisamente por isso que se justifica a afirmação: os pescadores são os que melhor conhecem o entorno ecológico e social de cada uma das comunidades, e, não obstante, quem planifica as políticas pesqueiras e a gestão dos recursos são os funcionários, com a assessoria de biólogos e economistas. E o fazem unilateralmente, prescindindo totalmente do saber que os pescadores têm de seu âmbito de experiência. (ALLUT, 2000: p.113-114)

A partir dessa conclusão aguarda-se a regulamentação do petrecho descrito, estando o pedido atualmente em análise junto ao órgão competente. Se o requerimento for deferido, o que é muito pouco provável devido à fraca pressão política (MALDONADO, 1986: p.45-46) do setor artesanal, e muito menos interesse ainda do órgão federal de regulação formal em ratificar um sistema tradicional de manejo pesqueiro, poderá ser a primeira vez em que o conhecimento tradicional local relativo à uma arte de pesca seja regulamentado na região de Ubatuba.
Paraty já conseguiu 80 licenças especiais (veja aqui postagem do Ministro Luiz Sérgio) para a pesca do camarão branco em canoas à remo. (veja aqui documento da câmara)
Nessa madrugada "de lua" a pescaria foi um sucesso, cerca de 2,5 Kg de branco e mais sororocas "de bicho" e peixe-reis.
Uns podem alegar que o tresmalho malha 6 mate peixes miúdos, mata sim, é verdade, mas toda a "miuçalha" é aproveitada, nada é jogado fora. Muitas famílias dependem desses peixes miúdos, e comparativamente, é muito menos "matança" do que a desgraceira feita pelos barcos de arrasto de porta, que jogam tudo fora e matam milhares de vezes mais.
O descarte de pescado ocorre na maioria das pescarias comerciais, entretanto em nenhuma delas seu volume é maior do que nos arrastos de camarão (EAYRS, 2007; FAO, 2010; GRAÇA LOPES et al., 2002; HALL, 1996; KELLEHER, 2005). Esta é uma questão que apresenta implicações para a biota associada à espécie alvo e para a economia, aumentando os custos relacionados às capturas (CHARLES, 2001). (fonte: AZEVEDO, 2014, p. 189).
Ao contrário do arrasto, os peixes da canoa muitas vezes são doados e matam a fome de muitas pessoas. Outro fator seletivo da pesca em canoa é que quando cai muito peixe miúdo, a pescaria é interrompida, pois o trabalho não compensa.
Cerca de 5 kg de miuçalha que foram doados, nesse dia a pescaria foi interrompida.
É totalmente falsa a alegação que pleiteia que a Enseada do Flamengo em Ubatuba (uma Enseada Fechada na classificação do Ibama, ou seja, sua “boca” ou entrada é menor que seu diâmetro e também uma Z2-ME pelo Gerco) seja ela inteira demarcada no plano de manejo da APA Marinha como “Área de Arrasto – Segurança em Contratempos”, pois os dois únicos ventos que ameaçam as embarcações no local são o SUL e o SUDOESTE, e quando eles sopram os únicos locais bons e seguros para fundeio são as Praias do Flamengo, Flamenguinho e Ribeira, que ficam abrigadas desses ventos. Todas as outras e principalmente a Enseada, recebem esses ventos de frente e com ondas altas. Outra falsidade no argumento, é que, nessa área da Enseada do Flamengo NÃO OCORRE O CAMARÃO SETE BARBAS, lá só ocorrem o CAMARÃO BRANCO e o ROSINHA (veja o mapeamento dos próprio pescadores nesse link, pgs. 39, 42, 47, 49 e 52). AMBAS ESPÉCIES SÃO PROTEGIDAS DO ARRASTO PELA LEGISLAÇÃO, OU SEJA A Z2-ME NESSE LOCAL DEVE SER AMPLIADA (como é a vontade local, veja o link) E NÃO REDUZIDA para que o local não se degrade ainda mais.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

PESCARIA TRADICIONAL DE GAROUPA, entrevista com Antenor e James.

Reproduzo aqui um trecho com menos de 5 minutos de uma conversa de uma hora. Quantos segredos, técnicas, habilidades, sabedoria estão contidos nesses 5 minutos... Imagine durante uma vida inteira de apenas um desses Mestres, que dirá de toda uma comunidade, de gerações... Estamos realmente a queimar bibliotecas em nome da modernidade e do preservacionismo ambiental. Preservacionismo esse que hoje reserva áreas naturais e seus recursos para o desfrute da indústria do turismo, e, no futuro, para uso e exploração das grandes corporações. Porque quando o motivo é alegar o desenvolvimento econômico de um país, o PIB ("gerar empregos"), tudo vale (vide a ampliação do porto de São Sebastião, Belo Monte, etc), e quando não existirem mais comunidades tradicionais que vivam nessas, ou dessas, áreas naturais, ficará muito mais fácil justificar o uso dos recursos para o "bem do país" e seu crescimento econômico.
Foto: Peter Nemeth, Antenor e James, dois Mestres caiçaras.
Esta conversa foi gravada com os Mestres Antenor e James, filhos do Zé Gil, um famoso pescador da Praia da Enseada.

Os pesqueiro Alemão, nós ecolhia antes, por causa de... quando pegava um peixe bom... então cê marcava ali... então tem toquero grande sabe, lugar grande esses toquero... que nem esse Carén Carén aí memo, o Carén Carén ele é um... é quase um cascalho, quase que um parcelzão lá fora, mas tem buraco que o peixe carregava... é só garoupão memo sabe, em baixo do costão, é... meu pai quantas vez quase virava nóis lá (para embarcar a garoupa na canoazinha).
Então assim, você mata um peixe que está naquela toca, outro vem e entra naquele lugar, começa a morar ali também?
Ah é... Eu levei o Ferrão pra pesca lá viu, o Carlos, na... na Boca da Arraia, ali no coisa, ele afundou veio loco: Nossa Senhora! Nunca vi tanto peixe! Que lugar fundo, mas como tem garoupa, só tem garoupa, só garoupão! Ficou tão loco, que nem um pinguim, até que matou uma garoupa e correu de lá por causa da Florestal né... mas lá tem muito. Pesquei co Lagarto uma vez lá, perdemo linha pra caramba lá. Mas é lugá de garoupão. Cê vê como é que é peixe, quase encostado na pedra, a canoa bate na pedra né, o costão... é buraco do costão que vai assim, num é assim, é o final do costão que é lascado. E você vê, ali num tem mar grosso... porque num... o mar num bate, ela sobe e desce com a canoa né, vem aquela onda leva lá no costão mas num vai pra cima né,  arria de novo... eu tinha um medo de pesca cum meu pai ali é... papai chegava pertinho, ele remava pra frente, eu remava pra trás... “Entra, rema seu burro!” (risos) “Tá com medo!”. Naquele tempo não jogava a poita ele pescava como o remo na mão, sabe Alemão, ele governando cum a mão ele enfiava lá na craca memo... Ah, quando ajuntava aquele peixe Alemão... nóis ia andava por cima da pedra... puta que pariu... me fodia cum ele viu...
E garoupa de quantos quilos que puxava mais ou menos?
Ah, a maior que matô aí foi... de linha, foi né, né 23 quilo, de linha... de linha, de espinhel matou bastante... mas de 18 de 20 de 11 de 12, é... todo dia trazia. Eu pescava com linha fina que era pra mantê a despesa, sabe, pagá a isca, matava marimbá, vermelho, jaguaruçá, garoupinha miúda, e ele na linha grossa, um dia falei: Pai, dá uma linha dessa grossa pra mim mata um garoupão desse aí, ele me deu uma linha quase da grossura daquele negócio da bicicleta, mas era linha de algodão Alemão, você fazia assim... tava pesada... jogava pra baixo... fazia assim... tava pesada... fiquei só com a ponta da linha na mão (risos) aí passô uma onda, dei uma ferrada... ele juntou a linha e foi colhendo linha da minha mão... dobrou aquilo e bateu na minha cara com a linha, “Cê num sabe pescá cum essa merda, num pesca”... (risos). Porque a linha fina cê sente, agora a pesada... fica aquele peso... corda de algodão cara... eu joguei a linha dentro da toca da pedra, ele ficô puto comigo... “Tá vendo... você num sabe pescá com isso, num pesca”.
Tinha algum tipo de sinal aqui assim de tipo de temperatura da água, ou alguma maré, que vocês já falavam: Hoje está bom pra garoupa?  
Água quente, água quente, molhava a mão, água quente tava bão, água fria num prestava... água clara né, água clara num presta... água clara ou água fria num presta... (James: Água fria num presta também, peixe entoca num sai.) ela só pega em toca de pedra, só dentro do buraco né.
Então é mais no verão né, a pescaria de garoupa?
Não... no inverno também dá água mais quente... É coisa que eu pesquei sempre com meu pai e nunca procuremo é...lua, nem... vivemo na pescaria a vida toda Alemão, todo dia... quatro hora da manhã, três hora ele saia do Portinho toda hora remano e ia embora... nós num tinha nada de lua, num tinha nada, só o que nós olhava era o Tempo.
Maré tinha, maré boa pra pescar?
Ah é a parte da manhã, Maré Testada né, maré... a parte da manhã que o peixe come e a parte da tarde... maré cheia é...
Eu pescava cum meu pai numa canoinha, tamanho da... daquela branca, aquela do Lagarto de lá rapaz, a onda batia molhava nóis, sabe assim, a gente rodava aquelas Palma de madrugada né rapaz... aquela Ponta de Sul das Palma é fundo pa caramba. Nóis entrava aqui pelo Leste e saía pelo Sul todo dia... quanta tromenta peguemo, ficamo lá pra cima da Praia de Leste, pra Praia do Sul... que num dava pra passá. E que num tinha comido num tinha nada, ficava assim na seca memo, fudido Alemão.
E comer, vocês não levavam comida, nada?
Ó Alemão, antigamente uma garrafa de café fria, uma garrafa de café fria... num num tinha garrafa né (térmica), garrafa coisa memo com rolha de coisa... e tinha veiz que levava resto de comida, farofa uma coisa assim pra comê né.
Comia na canoa mesmo ou parava?
Comia na canoa memo... que parava nada... meu pai era um homi Alemão que quando tava pescano, ele fumava no cachimbo... sabe o que ele fazia pa num botá fogo no cachimbo... ele cortava um pedaço de fumo com a unha e mastigava cara... pa num perdê tempo de acendê cachimbada...  tava comeno arguma coisa, gole de café num tinha caneca né, bebe na boca assim que nem...
E isca, que isca que vocês levavam?
Isca era bonito, bonito, sardinha, peixe que tinha (James: panaguaiú, sardinha.) peixe podre que tivesse... O melhor é o bonito, mas tem que tá meio passado, toda a pescaria assim de garoupa é isca passada... antigamente não tinha gelo, meu pai enterrava né, enterrava na areia, e no outro dia de manhã cavucava pra pesca... quando vinha de lá já tava meio podre ele jogava um bocado de sal pra num perdê né, punha sal e deixava... fidido pa caramba...

domingo, 10 de maio de 2015

Cada Canoa tem uma história

Mais uma vez peço licença ao Zé Ronaldo para reproduzir um trecho de seu Blog.

Tenho um depoimento do Baeco, fazedor de canoas. É um artista. Eis trechos do que ele diz: “A construção de canoa começa pela    escolha da melhor madeira, mas a famosa mesmo é o Cedro. Depois vem a  Timbuíba, o Ingá, o Bracuí... o Loro, o Guapuruvu e o Angelim. O Angelim  tem três tipos: Angelim Amargoso, Angelim Gisara e o Angelim Pedra. Estas   três são boas pra canoa. Esta é a madeira que a gente garante.” (...)   ”Madeira a gente escolhe a lua, sim; agora, não precisa ser uma minguante  de inverno; qualquer minguante é boa.” (...) ”A gente sabe a árvore que  vai dar boa canoa no olho, primeiro o olho... Você bate o olho, vai, erra   centímetros, e o tamanho é a boca da canoa” (...) ”O comprimento a gente  se baseia na boca, na largura da boca, tá? Normalmente é sete vezes um,  sete por uma. Sete vezes a largura da boca é o comprimento da canoa.”  (...) ”Se ela, por exemplo, tem sessenta centímetros de boca, sete vezes  seis quarenta e dois, então a canoa normalmente vai ter quatro metros e  vinte centímetros.” (...) ”Pra medir no mato a gente tem uma mania: põe  uma vara em direção à árvore antes do corte e aí sai com exatidão. A gente  põe a vara lá na direção que vai ser o meio da canoa, e olha de longe e  calcula. Porque tem a posição da boca, porque olhando na árvore você vê o  lado melhor para a boca. Você olha tem um lado que é ‘selado’ e tem o  outro que é mais ‘jeitoso’ para fazer a boca da canoa. A gente mede  naquele lado. Com a vara faz uma cruz. Um olha de longe e vê o que está  sobrando. Você vê com exatidão, porque a madeira é roliça. O outro, de   longe, olha, aí você empurra pra lá, empurra pra cá, até saber o centro  direitinho. Aí tira a grossura da casca, tira um pinguinho menos, e você tira o tamanho certo; aí sai exato, centímetro certo...”
          O homem vê na árvore a canoa e, então, a transforma. O que era uma árvore, um Angelim no meio da mata, transforma-se, vira utensílio,  instrumento, humaniza-se, torna-se mundo. A intimidade do homem com a canoa, que se torna extensão de seu corpo, de sua alma, que participa de  sua história. Quando na solidão do mar, em terra, a mulher, os filhos, os amigos esperam que ela não falhe em trazer de volta o pescador que a  navega, e a canoa, então, encarna a esperança. É ela que faz com que o mar, enquanto dificuldade, obstáculo, desafio, se torne possibilidade e  colabore também na formação do modo-de-ser caiçara desse homem.
           Na vida da maioria dos ubatubanos não há pelo menos uma história em que não esteja presente uma canoa. Nos meus tempos de infância, ela servia como veículo (além do uso na pesca) de transporte corriqueiro para os caiçaras do norte e do sul do município. A canoa é também fazedora de reminiscência. Tenho na memória duas canoas: a Mirim  (acho que já escrevi sobre ela aqui no O Guaruçá), que  meu pai me deu de presente bem antes de eu aprender a andar. Uma pequena  canoa de guapuruvu. Arisca que só ela. Boa parte de minha infância e  adolescência foi a bordo dessa canoinha, subindo e descendo o rio Grande  da cidade. A outra, uma velha canoa, era a que meu pai, juntamente com  alguns amigos dele, nos finais de semana, me levava para pescar com rede de arrasto na baía da cidade, na Praia do Cruzeiro. Ia na proa, deitando a  rede ao mar aos poucos, sincronizado à velocidade da canoa. Meu velho, na  popa, remava. Lançada a rede, em semicírculo, retornávamos à praia onde já  nos esperavam para começar a puxada da rede com cordas feitas de imbé.  Quando terminava a pescaria, subíamos a canoa, rolando-a sobre tocos de madeira até o rancho onde ela permaneceria esperando o próximo final de  semana. Era pesca de lazer para meu pai e seus amigos. Para mim, sair de canoa com meu pai, momentos mágicos, inesquecíveis. Lembrar de uma canoa é também lembrar-me do meu velho, meu primeiro e maior amigo. Que Deus o tenha.
Foto: Caiçara soul
 Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto é caiçara, 60, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

GLOSSÁRIO CAIÇARA DE UBATUBA, agora disponível na rede.

Esta pequena compilação surgiu, em sua maior parte, da convivência diária com a comunidade de pescadores tradicionais da Praia da Enseada em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Este glossário nem de longe abrange ou pretende alcançar a totalidade do universo de expressões e palavras usadas no falar característico do povo Caiçara. É apenas o resultado de curtos 7 anos de convivência íntima com alguns dos últimos guardiões da antiga tradição Caiçara local, tradição que hoje se detecta tão somente por este falar característico recheado de arcaísmos, palavras e expressões forjadas no linguajar ibérico e tupi, que a nova geração já não usa mais.

AGORA DISPONÍVEL AQUI


Exemplares disponíveis pelo email: bambuluz@yahoo.com.br

terça-feira, 5 de maio de 2015

Seminário Vila de Picinguaba, 25 anos de prevaricação do Estado.

Em 20 e 21 de abril de 1991, foi realizado na Praia da Picinguaba em Ubatuba, o Seminário “Vila de Picinguaba: propostas para seu desenvolvimento e preservação”.
Em março de 1992, sob coordenação: Adriana Mattoso e elaboração: Lucila Pinsard Vianna foi publicado pela SMA e IF o Relatório da Vila de Picinguaba, documento pioneiro que buscava alternativas para a problemática da ocupação humana em Unidades de Conservação através de um trabalho conjunto e verdadeiramente participativo com essas populações para a viabilização de soluções através de discussões, propostas e decisões. “Ainda dentro dessa perspectiva de participação, o Seminário foi uma etapa para alcançar o objetivo que visa resgatar nos moradores atitudes que possibilitem serem eles próprios os defensores do meio que os circunda”.
Também é corajoso, nesse Relatório, o posicionamento que critica veementemente a prevaricação do Estado por seus próprios servidores.
A conclusão do relatório do SMA e IF sobre o Seminário  já apontava em sua conclusão que, quanto às suas ações conservacionistas, “o Estado não consegue regulamentar os instrumentos que aplica”, quer seja por falta de propostas viáveis, por falta de recursos, por falta de domínio legal sobre o território ou falta de ação planejada. A importância desse relatório, construído à partir de um seminário com ampla participação da comunidade caiçara tradicional local, foi partir do pressuposto de que “a perda ou redução das tradições culturais afeta negativamente a conservação dos ecossistemas naturais” e que “a manutenção destas culturas é uma das condições mais importantes para a preservação da diversidade biológica”.
Outro apontamento significativo foi a ineficácia dos instrumentos de conservação impostos pelo Estado na tentativa conceitual equivocada de compatibilizar a preservação da cultura caiçara local, através do tombamento da Vila de Picinguaba, com a preservação da biodiversidade local, através da Criação do Parque Estadual. Ressaltando que: ”Quanto aos conceitos, três observações devem ser feitas: que o conceito de Parque exclui o objeto do Tombamento; que ambos os conceitos pressupõe uma realidade estática; e por fim que os conceitos não expressam a relação que há entre cultura e biodiversidade, como se um excluísse o outro”.
Conclui ainda o relatório, “Sem entrar no mérito do direito do Estado em tornar patrimônio público um modo de vida - a cultura caiçara – (Processo de Tombamento), é perceptível que suas ações para a conservação da biodiversidade (Criação do Parque Estadual) desaceleraram, mas não evitaram, o processo de desaparecimento deste mesmo modo de vida”.
E continua: “Temos que considerar também que a omissão estatal pode ser uma ação com efeitos retardados e prolongados. Neste sentido, a proibição pura e simples, sem qualquer alternativa para a população da Vila de Pincinguaba, pode ter, pelo contrário do que se pretendia, desestimulado essa população a manter seu modo de vida, e mesmo a se perpetuar no local. Para um legalista, isto pode aparentemente ser interessante, na medida em que expulsa gradualmente os habitantes de um Parque, o que iria de encontro com a legislação dos Parques Estaduais. Mas, se o raciocínio for neste sentido, estamos a preservar uma área para a ocupação e usufruto de turistas privilegiados em detrimento dos moradores de direito”.

Esse Relatório documenta primorosamente uma tentativa de vanguarda que buscou uma mudança de paradigma na forma de gestão de Unidades de Conservação. Infelizmente, após 25 anos, a situação é praticamente a mesma, a história, os conflitos e a ineficiência estatal se repete, e enquanto isso, a cultura caiçara vai desaparecendo. Quando o último portador dessa cultura desaparecer de vez, aí o Estado e seus patrocinadores poderão comemorar de dentro de seus condomínios pé na areia, com vista para o mar.



Fotos: imagens retiradas do facebook de Odaury Carneiro, onde infelizmente não foram creditadas.