terça-feira, 19 de maio de 2015

DA MALHA 6, TUDO SE APROVEITA.

Quando começa o "tempo frio" e ocorrem as primeiras "revoltas de mar", a turma já está preparada para testar suas redinhas de camarão.
Às vezes é puro palpite e outras pode ser um camarão branco que caiu no tresmalho malha 10 ou malha 7, dando o alarme.
Só que nessa época ocorre um grave conflito pesqueiro entre os barcos de arrastão de porta que entram na Enseada do Flamengo varrendo tudo, e as canoas que pescam camarão de rede de espera, que capturam seletivamente os peixes. Muitos pescadores de canoa são ameaçados aos berros de: "Tira essa rede daí senão vou passar por cima!", e várias vezes as redes amanhecem cortadas de faca ou mesmo desaparecem.
Aliás é proibido arrastar somente o camarão branco, não existe licença para isso, a licença é só para o camarão sete barbas como espécie alvo. Também o defeso, só existe, não para proteger o sete barbas, mas para permitir a migração do camarão rosinha (o juvenil do rosa), que nessa época sai do raso e vai para o fundo.

Foto: Peter Németh; Porto Meu Chamêgo.
Existe um tresmalho especialmente confeccionado para a captura do camarão branco (Litopenaeus schmitti), utilizado somente durante a safra nos meses do tempo frio (maio a julho). Essa rede é confeccionada com malha 6 (seis centímetros entre nós opostos), fio 0,30 e entre um e dois panos de altura com duzentas braças ou mais de comprido. Para o entralhe, as arcalas, tralhas, chumbo e cortiça seguem o padrão local de "2 e 1".
A condição ideal de mar para a pesca de tresmalho é logo após uma revolta de mar, quando as espécies alvo movimentam-se bastante e a água está mais turva.
Vale destacar que existe uma portaria que proíbe o uso da malha 6 em redes de pesca no litoral sudeste/sul do país, tornando essa pescaria ilegal na região. No entanto após um requerimento oficiado em 31 de março de 2008 junto ao IBAMA pela Associação Pescadores da Enseada (A.P.E.), uma O.N.G. que defende os interesses dos pescadores tradicionais locais, foi criado um grupo de trabalho para analisar a questão. Desse grupo surgiu um estudo envolvendo o Instituto de Pesca, a Fundação Pró-Tamar e o IBAMA, que identificou ser essa arte de pesca culturalmente endêmica na região de Ubatuba e comparativamente menos agressiva ao ambiente marinho, na captura do camarão branco, do que o arrastão de porta.
Uso sustentável dos camarões no Litoral Norte do estado de São Paulo, Descrição: O projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com o IBAMA, Instituto de Pesca e Projeto Tamar/ICMBio. Tem como objetivos acompanhar as pescarias dos camarões realizadas com redes de arrasto, principalmente o camarão-sete-barbas e o camarão-rosa, e avaliar os defesos instituídos através de Instrução Normativa do IBAMA. Também está sendo avaliada a pescaria do camarão-branco capturado por redes de emalhe/espera (malha 6), pelos pescadores artesanais tradicionais, sendo que esta modalidade pesqueira ainda não se encontra regulamentada pelo IBAMA.. , Situação: Em andamento; Natureza: Pesquisa. , Integrantes: Venancio Guedes de Azevedo - Integrante / Bruno Giffoni - Integrante / Laura Villwock de Miranda - Integrante / Maria Cristina Cergole - Coordenador., Financiador(es): Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais - Auxílio financeiro.

Tudo isso surge de um processo que pressupõe um sujeito cognitivo em constante interação entre o trabalho mental e manual, e entre este e seu entorno. E é precisamente por isso que se justifica a afirmação: os pescadores são os que melhor conhecem o entorno ecológico e social de cada uma das comunidades, e, não obstante, quem planifica as políticas pesqueiras e a gestão dos recursos são os funcionários, com a assessoria de biólogos e economistas. E o fazem unilateralmente, prescindindo totalmente do saber que os pescadores têm de seu âmbito de experiência. (ALLUT, 2000: p.113-114)

A partir dessa conclusão aguarda-se a regulamentação do petrecho descrito, estando o pedido atualmente em análise junto ao órgão competente. Se o requerimento for deferido, o que é muito pouco provável devido à fraca pressão política (MALDONADO, 1986: p.45-46) do setor artesanal, e muito menos interesse ainda do órgão federal de regulação formal em ratificar um sistema tradicional de manejo pesqueiro, poderá ser a primeira vez em que o conhecimento tradicional local relativo à uma arte de pesca seja regulamentado na região de Ubatuba.
Paraty já conseguiu 80 licenças especiais (veja aqui postagem do Ministro Luiz Sérgio) para a pesca do camarão branco em canoas à remo. (veja aqui documento da câmara)
Nessa madrugada "de lua" a pescaria foi um sucesso, cerca de 2,5 Kg de branco e mais sororocas "de bicho" e peixe-reis.
Uns podem alegar que o tresmalho malha 6 mate peixes miúdos, mata sim, é verdade, mas toda a "miuçalha" é aproveitada, nada é jogado fora. Muitas famílias dependem desses peixes miúdos, e comparativamente, é muito menos "matança" do que a desgraceira feita pelos barcos de arrasto de porta, que jogam tudo fora e matam milhares de vezes mais.
O descarte de pescado ocorre na maioria das pescarias comerciais, entretanto em nenhuma delas seu volume é maior do que nos arrastos de camarão (EAYRS, 2007; FAO, 2010; GRAÇA LOPES et al., 2002; HALL, 1996; KELLEHER, 2005). Esta é uma questão que apresenta implicações para a biota associada à espécie alvo e para a economia, aumentando os custos relacionados às capturas (CHARLES, 2001). (fonte: AZEVEDO, 2014, p. 189).
Ao contrário do arrasto, os peixes da canoa muitas vezes são doados e matam a fome de muitas pessoas. Outro fator seletivo da pesca em canoa é que quando cai muito peixe miúdo, a pescaria é interrompida, pois o trabalho não compensa.
Cerca de 5 kg de miuçalha que foram doados, nesse dia a pescaria foi interrompida.
É totalmente falsa a alegação que pleiteia que a Enseada do Flamengo em Ubatuba (uma Enseada Fechada na classificação do Ibama, ou seja, sua “boca” ou entrada é menor que seu diâmetro e também uma Z2-ME pelo Gerco) seja ela inteira demarcada no plano de manejo da APA Marinha como “Área de Arrasto – Segurança em Contratempos”, pois os dois únicos ventos que ameaçam as embarcações no local são o SUL e o SUDOESTE, e quando eles sopram os únicos locais bons e seguros para fundeio são as Praias do Flamengo, Flamenguinho e Ribeira, que ficam abrigadas desses ventos. Todas as outras e principalmente a Enseada, recebem esses ventos de frente e com ondas altas. Outra falsidade no argumento, é que, nessa área da Enseada do Flamengo NÃO OCORRE O CAMARÃO SETE BARBAS, lá só ocorrem o CAMARÃO BRANCO e o ROSINHA (veja o mapeamento dos próprio pescadores nesse link, pgs. 39, 42, 47, 49 e 52). AMBAS ESPÉCIES SÃO PROTEGIDAS DO ARRASTO PELA LEGISLAÇÃO, OU SEJA A Z2-ME NESSE LOCAL DEVE SER AMPLIADA (como é a vontade local, veja o link) E NÃO REDUZIDA para que o local não se degrade ainda mais.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

PESCARIA TRADICIONAL DE GAROUPA, entrevista com Antenor e James.

Reproduzo aqui um trecho com menos de 5 minutos de uma conversa de uma hora. Quantos segredos, técnicas, habilidades, sabedoria estão contidos nesses 5 minutos... Imagine durante uma vida inteira de apenas um desses Mestres, que dirá de toda uma comunidade, de gerações... Estamos realmente a queimar bibliotecas em nome da modernidade e do preservacionismo ambiental. Preservacionismo esse que hoje reserva áreas naturais e seus recursos para o desfrute da indústria do turismo, e, no futuro, para uso e exploração das grandes corporações. Porque quando o motivo é alegar o desenvolvimento econômico de um país, o PIB ("gerar empregos"), tudo vale (vide a ampliação do porto de São Sebastião, Belo Monte, etc), e quando não existirem mais comunidades tradicionais que vivam nessas, ou dessas, áreas naturais, ficará muito mais fácil justificar o uso dos recursos para o "bem do país" e seu crescimento econômico.
Foto: Peter Nemeth, Antenor e James, dois Mestres caiçaras.
Esta conversa foi gravada com os Mestres Antenor e James, filhos do Zé Gil, um famoso pescador da Praia da Enseada.

Os pesqueiro Alemão, nós ecolhia antes, por causa de... quando pegava um peixe bom... então cê marcava ali... então tem toquero grande sabe, lugar grande esses toquero... que nem esse Carén Carén aí memo, o Carén Carén ele é um... é quase um cascalho, quase que um parcelzão lá fora, mas tem buraco que o peixe carregava... é só garoupão memo sabe, em baixo do costão, é... meu pai quantas vez quase virava nóis lá (para embarcar a garoupa na canoazinha).
Então assim, você mata um peixe que está naquela toca, outro vem e entra naquele lugar, começa a morar ali também?
Ah é... Eu levei o Ferrão pra pesca lá viu, o Carlos, na... na Boca da Arraia, ali no coisa, ele afundou veio loco: Nossa Senhora! Nunca vi tanto peixe! Que lugar fundo, mas como tem garoupa, só tem garoupa, só garoupão! Ficou tão loco, que nem um pinguim, até que matou uma garoupa e correu de lá por causa da Florestal né... mas lá tem muito. Pesquei co Lagarto uma vez lá, perdemo linha pra caramba lá. Mas é lugá de garoupão. Cê vê como é que é peixe, quase encostado na pedra, a canoa bate na pedra né, o costão... é buraco do costão que vai assim, num é assim, é o final do costão que é lascado. E você vê, ali num tem mar grosso... porque num... o mar num bate, ela sobe e desce com a canoa né, vem aquela onda leva lá no costão mas num vai pra cima né,  arria de novo... eu tinha um medo de pesca cum meu pai ali é... papai chegava pertinho, ele remava pra frente, eu remava pra trás... “Entra, rema seu burro!” (risos) “Tá com medo!”. Naquele tempo não jogava a poita ele pescava como o remo na mão, sabe Alemão, ele governando cum a mão ele enfiava lá na craca memo... Ah, quando ajuntava aquele peixe Alemão... nóis ia andava por cima da pedra... puta que pariu... me fodia cum ele viu...
E garoupa de quantos quilos que puxava mais ou menos?
Ah, a maior que matô aí foi... de linha, foi né, né 23 quilo, de linha... de linha, de espinhel matou bastante... mas de 18 de 20 de 11 de 12, é... todo dia trazia. Eu pescava com linha fina que era pra mantê a despesa, sabe, pagá a isca, matava marimbá, vermelho, jaguaruçá, garoupinha miúda, e ele na linha grossa, um dia falei: Pai, dá uma linha dessa grossa pra mim mata um garoupão desse aí, ele me deu uma linha quase da grossura daquele negócio da bicicleta, mas era linha de algodão Alemão, você fazia assim... tava pesada... jogava pra baixo... fazia assim... tava pesada... fiquei só com a ponta da linha na mão (risos) aí passô uma onda, dei uma ferrada... ele juntou a linha e foi colhendo linha da minha mão... dobrou aquilo e bateu na minha cara com a linha, “Cê num sabe pescá cum essa merda, num pesca”... (risos). Porque a linha fina cê sente, agora a pesada... fica aquele peso... corda de algodão cara... eu joguei a linha dentro da toca da pedra, ele ficô puto comigo... “Tá vendo... você num sabe pescá com isso, num pesca”.
Tinha algum tipo de sinal aqui assim de tipo de temperatura da água, ou alguma maré, que vocês já falavam: Hoje está bom pra garoupa?  
Água quente, água quente, molhava a mão, água quente tava bão, água fria num prestava... água clara né, água clara num presta... água clara ou água fria num presta... (James: Água fria num presta também, peixe entoca num sai.) ela só pega em toca de pedra, só dentro do buraco né.
Então é mais no verão né, a pescaria de garoupa?
Não... no inverno também dá água mais quente... É coisa que eu pesquei sempre com meu pai e nunca procuremo é...lua, nem... vivemo na pescaria a vida toda Alemão, todo dia... quatro hora da manhã, três hora ele saia do Portinho toda hora remano e ia embora... nós num tinha nada de lua, num tinha nada, só o que nós olhava era o Tempo.
Maré tinha, maré boa pra pescar?
Ah é a parte da manhã, Maré Testada né, maré... a parte da manhã que o peixe come e a parte da tarde... maré cheia é...
Eu pescava cum meu pai numa canoinha, tamanho da... daquela branca, aquela do Lagarto de lá rapaz, a onda batia molhava nóis, sabe assim, a gente rodava aquelas Palma de madrugada né rapaz... aquela Ponta de Sul das Palma é fundo pa caramba. Nóis entrava aqui pelo Leste e saía pelo Sul todo dia... quanta tromenta peguemo, ficamo lá pra cima da Praia de Leste, pra Praia do Sul... que num dava pra passá. E que num tinha comido num tinha nada, ficava assim na seca memo, fudido Alemão.
E comer, vocês não levavam comida, nada?
Ó Alemão, antigamente uma garrafa de café fria, uma garrafa de café fria... num num tinha garrafa né (térmica), garrafa coisa memo com rolha de coisa... e tinha veiz que levava resto de comida, farofa uma coisa assim pra comê né.
Comia na canoa mesmo ou parava?
Comia na canoa memo... que parava nada... meu pai era um homi Alemão que quando tava pescano, ele fumava no cachimbo... sabe o que ele fazia pa num botá fogo no cachimbo... ele cortava um pedaço de fumo com a unha e mastigava cara... pa num perdê tempo de acendê cachimbada...  tava comeno arguma coisa, gole de café num tinha caneca né, bebe na boca assim que nem...
E isca, que isca que vocês levavam?
Isca era bonito, bonito, sardinha, peixe que tinha (James: panaguaiú, sardinha.) peixe podre que tivesse... O melhor é o bonito, mas tem que tá meio passado, toda a pescaria assim de garoupa é isca passada... antigamente não tinha gelo, meu pai enterrava né, enterrava na areia, e no outro dia de manhã cavucava pra pesca... quando vinha de lá já tava meio podre ele jogava um bocado de sal pra num perdê né, punha sal e deixava... fidido pa caramba...

domingo, 10 de maio de 2015

Cada Canoa tem uma história

Mais uma vez peço licença ao Zé Ronaldo para reproduzir um trecho de seu Blog.

Tenho um depoimento do Baeco, fazedor de canoas. É um artista. Eis trechos do que ele diz: “A construção de canoa começa pela    escolha da melhor madeira, mas a famosa mesmo é o Cedro. Depois vem a  Timbuíba, o Ingá, o Bracuí... o Loro, o Guapuruvu e o Angelim. O Angelim  tem três tipos: Angelim Amargoso, Angelim Gisara e o Angelim Pedra. Estas   três são boas pra canoa. Esta é a madeira que a gente garante.” (...)   ”Madeira a gente escolhe a lua, sim; agora, não precisa ser uma minguante  de inverno; qualquer minguante é boa.” (...) ”A gente sabe a árvore que  vai dar boa canoa no olho, primeiro o olho... Você bate o olho, vai, erra   centímetros, e o tamanho é a boca da canoa” (...) ”O comprimento a gente  se baseia na boca, na largura da boca, tá? Normalmente é sete vezes um,  sete por uma. Sete vezes a largura da boca é o comprimento da canoa.”  (...) ”Se ela, por exemplo, tem sessenta centímetros de boca, sete vezes  seis quarenta e dois, então a canoa normalmente vai ter quatro metros e  vinte centímetros.” (...) ”Pra medir no mato a gente tem uma mania: põe  uma vara em direção à árvore antes do corte e aí sai com exatidão. A gente  põe a vara lá na direção que vai ser o meio da canoa, e olha de longe e  calcula. Porque tem a posição da boca, porque olhando na árvore você vê o  lado melhor para a boca. Você olha tem um lado que é ‘selado’ e tem o  outro que é mais ‘jeitoso’ para fazer a boca da canoa. A gente mede  naquele lado. Com a vara faz uma cruz. Um olha de longe e vê o que está  sobrando. Você vê com exatidão, porque a madeira é roliça. O outro, de   longe, olha, aí você empurra pra lá, empurra pra cá, até saber o centro  direitinho. Aí tira a grossura da casca, tira um pinguinho menos, e você tira o tamanho certo; aí sai exato, centímetro certo...”
          O homem vê na árvore a canoa e, então, a transforma. O que era uma árvore, um Angelim no meio da mata, transforma-se, vira utensílio,  instrumento, humaniza-se, torna-se mundo. A intimidade do homem com a canoa, que se torna extensão de seu corpo, de sua alma, que participa de  sua história. Quando na solidão do mar, em terra, a mulher, os filhos, os amigos esperam que ela não falhe em trazer de volta o pescador que a  navega, e a canoa, então, encarna a esperança. É ela que faz com que o mar, enquanto dificuldade, obstáculo, desafio, se torne possibilidade e  colabore também na formação do modo-de-ser caiçara desse homem.
           Na vida da maioria dos ubatubanos não há pelo menos uma história em que não esteja presente uma canoa. Nos meus tempos de infância, ela servia como veículo (além do uso na pesca) de transporte corriqueiro para os caiçaras do norte e do sul do município. A canoa é também fazedora de reminiscência. Tenho na memória duas canoas: a Mirim  (acho que já escrevi sobre ela aqui no O Guaruçá), que  meu pai me deu de presente bem antes de eu aprender a andar. Uma pequena  canoa de guapuruvu. Arisca que só ela. Boa parte de minha infância e  adolescência foi a bordo dessa canoinha, subindo e descendo o rio Grande  da cidade. A outra, uma velha canoa, era a que meu pai, juntamente com  alguns amigos dele, nos finais de semana, me levava para pescar com rede de arrasto na baía da cidade, na Praia do Cruzeiro. Ia na proa, deitando a  rede ao mar aos poucos, sincronizado à velocidade da canoa. Meu velho, na  popa, remava. Lançada a rede, em semicírculo, retornávamos à praia onde já  nos esperavam para começar a puxada da rede com cordas feitas de imbé.  Quando terminava a pescaria, subíamos a canoa, rolando-a sobre tocos de madeira até o rancho onde ela permaneceria esperando o próximo final de  semana. Era pesca de lazer para meu pai e seus amigos. Para mim, sair de canoa com meu pai, momentos mágicos, inesquecíveis. Lembrar de uma canoa é também lembrar-me do meu velho, meu primeiro e maior amigo. Que Deus o tenha.
Foto: Caiçara soul
 Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto é caiçara, 60, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

GLOSSÁRIO CAIÇARA DE UBATUBA, agora disponível na rede.

Esta pequena compilação surgiu, em sua maior parte, da convivência diária com a comunidade de pescadores tradicionais da Praia da Enseada em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Este glossário nem de longe abrange ou pretende alcançar a totalidade do universo de expressões e palavras usadas no falar característico do povo Caiçara. É apenas o resultado de curtos 7 anos de convivência íntima com alguns dos últimos guardiões da antiga tradição Caiçara local, tradição que hoje se detecta tão somente por este falar característico recheado de arcaísmos, palavras e expressões forjadas no linguajar ibérico e tupi, que a nova geração já não usa mais.

AGORA DISPONÍVEL AQUI


Exemplares disponíveis pelo email: bambuluz@yahoo.com.br

terça-feira, 5 de maio de 2015

Seminário Vila de Picinguaba, 25 anos de prevaricação do Estado.

Em 20 e 21 de abril de 1991, foi realizado na Praia da Picinguaba em Ubatuba, o Seminário “Vila de Picinguaba: propostas para seu desenvolvimento e preservação”.
Em março de 1992, sob coordenação: Adriana Mattoso e elaboração: Lucila Pinsard Vianna foi publicado pela SMA e IF o Relatório da Vila de Picinguaba, documento pioneiro que buscava alternativas para a problemática da ocupação humana em Unidades de Conservação através de um trabalho conjunto e verdadeiramente participativo com essas populações para a viabilização de soluções através de discussões, propostas e decisões. “Ainda dentro dessa perspectiva de participação, o Seminário foi uma etapa para alcançar o objetivo que visa resgatar nos moradores atitudes que possibilitem serem eles próprios os defensores do meio que os circunda”.
Também é corajoso, nesse Relatório, o posicionamento que critica veementemente a prevaricação do Estado por seus próprios servidores.
A conclusão do relatório do SMA e IF sobre o Seminário  já apontava em sua conclusão que, quanto às suas ações conservacionistas, “o Estado não consegue regulamentar os instrumentos que aplica”, quer seja por falta de propostas viáveis, por falta de recursos, por falta de domínio legal sobre o território ou falta de ação planejada. A importância desse relatório, construído à partir de um seminário com ampla participação da comunidade caiçara tradicional local, foi partir do pressuposto de que “a perda ou redução das tradições culturais afeta negativamente a conservação dos ecossistemas naturais” e que “a manutenção destas culturas é uma das condições mais importantes para a preservação da diversidade biológica”.
Outro apontamento significativo foi a ineficácia dos instrumentos de conservação impostos pelo Estado na tentativa conceitual equivocada de compatibilizar a preservação da cultura caiçara local, através do tombamento da Vila de Picinguaba, com a preservação da biodiversidade local, através da Criação do Parque Estadual. Ressaltando que: ”Quanto aos conceitos, três observações devem ser feitas: que o conceito de Parque exclui o objeto do Tombamento; que ambos os conceitos pressupõe uma realidade estática; e por fim que os conceitos não expressam a relação que há entre cultura e biodiversidade, como se um excluísse o outro”.
Conclui ainda o relatório, “Sem entrar no mérito do direito do Estado em tornar patrimônio público um modo de vida - a cultura caiçara – (Processo de Tombamento), é perceptível que suas ações para a conservação da biodiversidade (Criação do Parque Estadual) desaceleraram, mas não evitaram, o processo de desaparecimento deste mesmo modo de vida”.
E continua: “Temos que considerar também que a omissão estatal pode ser uma ação com efeitos retardados e prolongados. Neste sentido, a proibição pura e simples, sem qualquer alternativa para a população da Vila de Pincinguaba, pode ter, pelo contrário do que se pretendia, desestimulado essa população a manter seu modo de vida, e mesmo a se perpetuar no local. Para um legalista, isto pode aparentemente ser interessante, na medida em que expulsa gradualmente os habitantes de um Parque, o que iria de encontro com a legislação dos Parques Estaduais. Mas, se o raciocínio for neste sentido, estamos a preservar uma área para a ocupação e usufruto de turistas privilegiados em detrimento dos moradores de direito”.

Esse Relatório documenta primorosamente uma tentativa de vanguarda que buscou uma mudança de paradigma na forma de gestão de Unidades de Conservação. Infelizmente, após 25 anos, a situação é praticamente a mesma, a história, os conflitos e a ineficiência estatal se repete, e enquanto isso, a cultura caiçara vai desaparecendo. Quando o último portador dessa cultura desaparecer de vez, aí o Estado e seus patrocinadores poderão comemorar de dentro de seus condomínios pé na areia, com vista para o mar.



Fotos: imagens retiradas do facebook de Odaury Carneiro, onde infelizmente não foram creditadas.