quarta-feira, 22 de março de 2017

A PESCA EM UBATUBA 1974, Estudo Sócio Econômico.

Interessante resgatar este documento que apresenta "subsídios interessantes a respeito da evolução da produção pesqueira e das técnicas de captura, das condições de comercialização, das relações de trabalho e participação social".
Embora seja um documento editado pela SUDELPA, a maior parte dos dados apresentados foram coletados pelo Prof. Antonio Carlos Sant'Ana Diegues entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970 em viagens de campo feitas em Ubatuba.
O que torna este estudo especial é que ele compõe um quadro da atividade pesqueira de Ubatuba em uma época de sensíveis mudanças socioeconômicas e culturais que impactaram fortemente a região. A abordagem do Prof. Diegues revela um panorama completo da percepção dos pescadores sobre questões como o impacto da abertura da BR e outros aspectos relevantes tais como: Histórico da atividade pesqueira em Ubatuba,  Produção por Espécie em Ubatuba, Valor da Produção,  Distribuição dos Pescadores por Praia, Tecnologia e Produção, Participação Social,  Dificuldade e Aspirações, Quadro de produtividade do cerco flutuante, etc.
Tudo isso permite um verdadeiro mergulho na atividade pesqueira de Ubatuba do início dos anos 1970 fornecendo valiosos dados que nos permite avaliar as mudanças e as não mudanças que ocorrem nos dias atuais, meio século depois.

Abaixo um trecho do TEXTO COMPLETO de "A PESCA EM UBATUBA, estudo sócio econômico", Antonio Carlos Sant'Ana Diegues, SUDELPA, 1974. 

"Por outro lado, o contato maior do embarcado com os centros urbanos maiores como Santos e Rio de Janeiro faz com que ele vá absorvendo valores urbanos que se manifestam inicialmente na maneira de se comportar, no modo bizarro de se vestir imitando os jovens da cidade, etc. Nas praias como Picinguaba, no "claro" pode-se observar os jovens embarcados trajando camisas estampadas, calças justas e usando cabelo comprido, fenômeno que não se encontra nos artesanais das praias geograficamente mais isoladas.

Um outro sistema de vinculação com as atividades agrícolas é o uso ou não do forno de fazer farinha de mandioca. Enquanto que 29,5% dos artesanais afirmavam ter o forno, somente 15.5% dos industriais o possuíam. Dentro das sub-categorias a diferenciação é até mais significativa, pois entre os artesanais "donos dos aparelhos de pesca" a porcentagem se elevava a 37.1% enquanto que para os camaradas, não passava de 12.5%. Evidentemente a subcategoria dos mestres de barco é a que mais se identifica com a pesca: nenhum deles exerce outra atividade paralela e não tem forno de farinha.

Em termos de praias é interessante se observar, que a atividade agrícola exercida conjuntamente com a pesca pelos artesanais é mais presente em praias como Ubatumirim, Camburi, ao norte do município. Aliás é Ubatumirim que possui o maior número de agricultores nessa parte norte do município e eles são fornecedores de farinha de mandioca para Picinguaba, núcleo agora mais especializado na pesca da sardinha. Já nas praias mais próximas à cidade as atividades complementares não são agrícolas e sim do ramo de serviços (construções civis, biscates, etc.) como é o caso do Lázaro, Enseada e Maranduba.

Quanto a algumas características gerais da população de pescadores é desnecessário se afirmar que vivendo em sua grande maioria em situação de extrema marginalização, pois seus rendimentos em geral só lhes permitem a sobrevivência, os pescadores apresentam baixos índices de alfabetização".

terça-feira, 21 de março de 2017

A ineficiente regulação do Estado e a questão do "Respeito".

O trecho que reproduzo a seguir é o item 5 da dissertação de mestrado que concluí no ano de 2016. Trazendo para o debate os vários pontos que precisam ser discutidos de forma honesta e realista para viabilizar a gestão eficaz e com justiça social do território costeiro do litoral norte de São Paulo.

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A complexidade do universo abordado por esta dissertação e a limitada formação deste pesquisador não permitiram que nossa investigação esgotasse o tema, mesmo em se tratando dos aspectos relativos à atuação de poucos pescadores sobre um território próprio tão específico.
Uma característica interessante do território pesquisado é que ele representa um microcosmo reunindo todas as características especiais necessárias para o desenvolvimento de pesquisas científicas, sobre as principais atividades causadoras dos impactos ambientais mais expressivos que hoje ocorrem em todo o litoral norte de São Paulo e os potenciais conflitos socioecológicos advindos destas atividades. Por exemplo, existem ao redor da Enseada do Flamengo:
1- um emissário submarino, operado irregularmente pela SABESP há mais de 30 anos, despejando esgoto e cloro diuturnamente a apenas 70 metros da areia da praia;
2- uma das maiores concentrações de leitos para aluguel de temporada de Ubatuba, quiosques e restaurantes, com baixíssimo índice de coleta e tratamento de esgoto;
3- o maior polo náutico da região com dezenas de marinas e garagens náuticas, causando o tráfego intenso de centenas de embarcações dentro de “UCs” federais e estaduais;
4- ainda, uma última península verde, o Morro da Ponta do Espia, local de antigas roças comunitárias e casinhas caiçaras; muitos pesqueiros tradicionais, ruínas, pomares ancestrais, fontes, olhos d’água, riachos e “praias virgens”. Este morro constitui zona de amortecimento por fazer “divisa” com o Parque Estadual da Ilha Anchieta e com a Estação Ecológica Tupinambás, no entanto, está hoje prestes a se tornar mais um resort de luxo, condomínio fechado para deleite do lobby especulativo imobiliário local;
5- uma “área preferencial” aquícola com várias fazendas marinhas familiares de baixo impacto (2 mil m², sem a utilização de arraçoamento), que contribuem para atrair, abrigar e fomentar a reprodução e dispersão (spill out) de uma grande variedade de organismos marinhos que nestes cultivos ocorrem naturalmente;
6- uma base de operações do Instituto Oceanográfico da USP, um centro de excelência em pesquisa marinha;
7- e desde 2004, uma associação de pescadores e maricultores locais, a Associação Pescadores da Enseada (APE), que costuma fazer a ponte de ligação entre pesquisadores e a comunidade tradicional local, facilitando muito o contato inicial para a troca de informações e desenvolvimento de pesquisas de campo.
Isto posto, concluímos que a gradativa perda dos valores tradicionais que garantem através do “segredo” o acesso restrito e controlado aos pesqueiros e seus recursos, somada à ingerência ou à incapacidade técnica e operacional dos órgãos governamentais responsáveis pela gestão e regulação destes recursos naturais, pode levar ao que Hardin chamou de A tragédia dos comuns. Desse modo, quando o espaço-recurso que é de todos, passa a ser de ninguém, pela ausência de mecanismos externos oficiais ou tradicionais de regulação, desde que ambos fundamentados no “respeito”, passa a imperar o estado de anomia, do “se eu não matar, outro vem e mata[1], processo que acelera a degradação do recurso pesqueiro e a falência dos valores comunitários locais.    
Portanto, havendo comprovação sob a ótica do direito consuetudinário de prática tradicional reiterada e constante dentro desses territórios pesqueiros estudados, automaticamente estará identificado o PHT que atesta ser esta, e não outra comunidade caiçara, a ancestral possuidora do “direito real de uso” e gestão desses espaços geográficos específicos, imprescindíveis para a reprodução material, simbólica e sociocultural do próprio grupo de pescadores locais.
Observando os temas relacionados nesse estudo e nos debruçando sobre a análise dos autores consultados e dos dados de campo obtidos, percebemos a importância que a noção do “respeito” ocupa dentro do sistema sociocultural das comunidades tradicionais de pescadores artesanais costeiros. Podemos notar que a principal regra tácita do “respeito” adotada na região estudada é a de “chegar primeiro”.
Também outra condição essencial para que um pescador alcance o “respeito” recíproco atingindo a posição de “mestre” dentro da hierarquia social e simbólica da comunidade é o grau de conhecimento, ou o saber-fazer próprio acumulado acerca dos territórios pesqueiros; das artes de pesca; do habitat das espécies recorrentes; das épocas de safra; da previsão meteorológica do Tempo; de sua capacidade pessoal física e artística, além da facilidade didática em retransmitir esses conhecimentos tradicionais para os aprendizes. Esse corpo de saberes, repositório de habilidades especiais ou “mestrança”, podem ser examinados, avaliados e aprovados socialmente pela prática da faina pesqueira diária e pelo sucesso das pescarias.
Como visto anteriormente, os mestres por sua autoridade coletivamente reconhecida são os naturais detentores do PHT que comporta todo o regramento cultural responsável pela construção, interpretação, gestão, manejo e uso dos territórios pesqueiros da própria comunidade local.
Desse modo obtemos pistas que indicam o porquê das instituições governamentais falharem em alcançar o “respeito” e a confiança dessas comunidades.
O motivo básico fundamental da desconfiança e da não ratificação do sistema formal de gestão ambiental-pesqueira por parte dos pescadores tradicionais locais é que este sistema desrespeita diretamente as duas regras chave que estão arraigadas basilarmente no código informal do respeito (o dos pescadores), atropelando o PHT local que regulamenta o usufruto dos seus territórios pesqueiros.
Portanto:
1- As instituições governamentais formais falham, por não considerar a regra do chegar primeiro, pois a comunidade tradicional está ligada àquele território por séculos e o “meio ambiente[2] com seu regramento alienígena surgiu apenas recentemente;
2- Os legisladores falham, por instituir um processo arbitrário de tomada de decisões, construído e politicamente barganhado em gabinetes, que não respeita a autoridade comunitária da mestrança e o grau de conhecimento que os mestres detêm sobre o uso do ambiente natural local e as especificidades próprias de cada território pesqueiro. Valorizando critérios ecológicos e político-econômicos da sociedade urbano-industrial e desvalorizando o PHT local.
Assim, a esfera governamental, através de seus analistas ambientais tecnocratas tenta, em vão, reduzir a diversidade fluída e volúvel do mar e seus recursos inconstantes a um regramento denominador comum universal. Os instrumentos normativos, tais como: leis, decretos, resoluções e portarias não dão conta de policiar todo o espectro de variáveis relacionadas ao uso do ambiente marinho. Essa é uma habilidade somente reservada aos mestres pescadores que estão ligados material e simbolicamente a um território pesqueiro local, particular e específico, transmitido socioculturalmente de geração em geração.
Existe um abismo entre visões de mundo diversas, na busca de um novo horizonte político-científico que dê conta da complexidade das urgentes questões socioambientais planetárias que se colocam para a humanidade.
Até agora, apesar dos inúmeros sinais de catástrofes socioambientais iminentes, a única certeza político-científica validada é a da incerteza ampla e generalizada sobre qual rumo devemos tomar. O paradigma científico mainstream atual, ainda incapaz de apontar um novo rumo claro e certo que liberte a própria ciência do círculo vicioso epistêmico positivista em que ela mesma se colocou, precisa considerar a validade de outras formas de saber que também se comprovam eficazes. Incorporando assim outras formas de também produzir ciência de modo empírico, e sofisticado, não pela teoria, mas por sua prática histórica permanente e ancestralmente continuada através dos tempos.
Desse modo, o saber-fazer constituinte do PHT pode contribuir ao menos para orientar em qual direção e sentido deva o conhecimento político-científico “normal” caminhar para superar a atual crise de não resposta acerca das interações homem-natureza.
Seria esta a implementação de um novo ethos político-científico capaz de ampliar o alcance da gestão governamental: integrando diferentes modos de percepção do mundo ao nosso redor ao respeitar a autonomia dos pescadores locais na aplicação do patrimônio cultural pesqueiro dessas comunidades, ao seu próprio território marítimo de origem, em consonância com os objetivos de conservação socioambiental do Parque Estadual da Ilha Anchieta[3], da APA Marinha do LN, do SNUC e da Resolução 169 da OIT.
Nosso trabalho demonstra a dificuldade extrema dos órgãos oficiais responsáveis pela fiscalização e gestão dos recursos pesqueiros em: conhecer, reconhecer e legislar sobre a diversidade de artes de pesca, técnicas e petrechos desenvolvidos e adaptados localmente de acordo com as peculiaridades de cada espécie alvo e cada ambiente marinho. Também se mostrando incapazes em enxergarem o “mundo” através da cultura local dos pescadores artesanais caiçaras.
O que prevalece no universo da “política de Estado” para o “meio-ambiente”, são sempre os interesses do capital econômico especulativo dissimulado e/ou disfarçado com a utilização de técnicas de “marketing verde” (greenwashing), usurpando conceitos científicos “ambientalistas” em causa própria. A finalidade dessa estratégia é obter o apoio da “opinião pública” para seus “empreendimentos turísticos”, condomínios e marinas “sustentáveis”[4] que gerariam “oportunidades de emprego e renda” aos pescadores e suas famílias. Estes, assim, poderiam “parar de devastar os peixes” abrindo mão de seus territórios pesqueiros para o “mergulho contemplativo” ou para a indústria da piscicultura.  É esse o discurso retórico “sustentável” especulativo padrão, que hoje domina os “fóruns” do litoral norte paulista.
Não obstante essa associação entre Estado e capital econômico, o processo de construção de políticas públicas através de normas de comando e controle, que é fruto do embate das ideias tentando apreender ou moldar a dimensão física material, de acordo com interesses político-econômicos, é, em sua essência, antagônico ao processo de construção do regramento tácito das populações tradicionais.
Na estruturação do trabalho e do manejo nos pesqueiros, é a natureza material dos espaços, com seus ritmos, ciclos, surpresas e geografia peculiares, quem molda as “leis do respeito”, dentro de uma tradição cultural local resiliente, o PHT.Desse modo, o saber-fazer tradicional está em consonância com o plano material bio-geofísico em que se insere, num processo análogo ao científico de constante avaliação, corroboração, adaptação e revalidação do conhecimento pesqueiro local.
Portanto, qualquer tentativa de gestão sobre essas culturas-territórios-ambientes que não “respeite” as dimensões materiais e simbólicas da população local, seus saberes, técnicas e tipologias de pesca, reconhecendo a sua capacidade de gerência eficaz do ambiente natural em que estão propriamente inseridas, contribui para a construção de uma política pública natimorta. Impossível de ser posta em prática, ou absorvida pelo PHT, devido a sua original ininteligibilidade ao “espírito caiçara”. Trata-se da institucionalização oficial do epistemicídio.
Assim, o máximo de concretude que estas regras alienígenas alcançam é a de uma simples folha de papel amarelada pelo tempo, esquecida em um fundo de gaveta qualquer.
Ou, se for mais nobre seu destino, uma página do “Diário Oficial” que embrulha a garoupa de linha vendida por um pescador caiçara do lugá, no banco da sua canoa.
A cultura caiçara resiste.

Foto: Peter Santos Németh, Praia da Enseada, setembro de 2006


[1] Comunicação pessoal do mestre Antenor dos Santos, Praia da Enseada, 2004.
[2] Denominação genérica, comum entre os caiçaras, de tudo que envolve questões ou instituições governamentais de regulamento e gestão das áreas naturais.
[3] Principalmente do Plano de Manejo do PEIA de 1989 e das oficinas do Conselho Gestor do PEIA de 2008.
[4] Seria este o caso de: proporcionar para a geração atual a oportunidade de desfrutar residências de alto padrão dentro de resorts de luxo envoltos pela mata atlântica e com direito a garagens náuticas, sem comprometer a capacidade dos futuros herdeiros de também possuírem suas mansões na floresta e ancoradouros para seus iates?

sábado, 4 de março de 2017

A PESCA DE TRÓIA EM UBATUBA-SÃO PAULO

SUBSÍDIOS PARA O PLANO DE GESTÃO PARA O USO SUSTENTÁVEL DA TAINHA, NO BRASIL.

Autores:
Peter Santos Németh e Antonio Carlos Sant'Ana Diegues

Resumo:
O presente estudo etnográfico procura caracterizar a arte de pesca denominada pesca de tróia e os petrechos utilizados nesse tipo de técnica pesqueira tradicional, em Ubatuba. A pesca de tainhas e paratis (Família Mugilidae) é de grande valor socioeconômico e seus primeiros registros no litoral sudeste brasileiro datam de meados do século XVI. Ainda hoje, a pesca de tróia é praticada em diversas comunidades locais do litoral norte de São Paulo. Culturalmente, essa técnica de pesca é de extrema importância para a transmissão dos saberes tradicionais relacionados às artes de pesca praticadas em canoas à remo e uma das principais responsáveis pela manutenção do patrimônio cultural pesqueiro caiçara.

TEXTO COMPLETO

Este artigo derivou da dissertação de mestrado entitulada:
A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local
Praia da Enseada final dos anos 1940. Foto: Paulo Florençano